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Que em 2021 retomemos a empatia

Com passagens por Grêmio, Borussia Dortmund, Inter e Cruzeiro, ex-jogador Tinga é empresário e palestrante - Arquivo pessoal / Divulgação
Com passagens por Grêmio, Borussia Dortmund, Inter e Cruzeiro, ex-jogador Tinga é empresário e palestrante Imagem: Arquivo pessoal / Divulgação

01/01/2021 04h00

A disseminação do discurso de intolerância virou algo rotineiro no mundo atual. Apesar de alguns lutarem para combater esta prática maléfica, outros não se cansam de proliferar preconceito e fake news. E me parece que 2020 ficou marcado pela ausência do diálogo e pela série de divisões por qualquer que seja o motivo ou o setor.

2020 ficou marcado pelos "cancelamentos" e "lacrações", ou seja, se não agradou, foi condenado, crucificado e acabou alvo de ataques virtuais. Mas se caiu nas graças da rede, se tornou hit do Instagram ou do Twitter, tornando-se a 'hashtag do momento'.

2020 ficou marcado pela ausência da empatia, de paciência, de aceitação pela opinião contrária, claro, muito disto ocasionado pela polarização na política brasileira em um ano de eleição. Não houve espaço para falhas.

Talvez isso seja algo que sempre esteve entre nós, mas acredito que havia um certo respeito, brechas para um debate entre as opiniões e opções contrárias.

2020 me fez sentir estes ataques na pele. Senti muito orgulhoso ao ser convidado pelo governo federal para assumir a secretaria Nacional de Futebol e Defesa dos Direitos do Torcedor do Ministério da Cidadania porque tive uma infância e adolescência humilde na Restinga, bairro carente no extremo-sul de Porto Alegre.

Por não ter estudado quando jovem — algo que, felizmente, consegui alcançar depois da minha aposentadoria dos gramados —, ser lembrado para ocupar um cargo importante como este me encheu de satisfação e felicidade.

Mas só de eu ter ido a Brasília para encontrar membros do atual governo, mesmo que não tenha aceitado o convite, fui atacado e chamado de fascista, entre outros insultos. Virou comum atacar e taxar os demais sem saber a real situação.

Tinga posta mensagem de ano novo em sua conta no Instagram - Instagram/ Reprodução  - Instagram/ Reprodução
Imagem: Instagram/ Reprodução

Eu não tenho um lado partidário nem idolatro políticos, mas, sim, acredito e apoio projetos. Independentemente de quem esteja no comando, eu torço pelo nosso país, assim como fiz com os que estiveram no cargo antes do atual presidente.

Parece que, assim como foi dito pelo secretário-geral da ONU (Organização das Nações Unidas), Antonio Guterres, a pandemia gerou um "tsunami de ódio e xenofobia". Recentemente, o Facebook identificou e excluiu, ao redor do mundo, 22,5 milhões de conteúdos com discurso de ódio apenas no terceiro trimestre de 2020 — mais do que o dobro do número removido durante os primeiros três meses do ano. Além disso, também eliminou 1,5 bilhão de contas falsas.

E olha que, em 2019, o instituto Ipsos já havia apontado que os brasileiros estavam, entre 27 países, menos propensos a aceitar as diferenças políticas, uma vez que 32% dos entrevistados afirmaram que não valia a pena nem tentar conversar com pessoas que tinham visões diferentes das suas.

2020 foi o ano em que amigos próximos "perderam" a intimidade de me chamar de negão. Eu adoro ser chamado de negão, me sinto bem quando me chamam assim, e respeito os que não gostam. Sei que quando querem me enaltecer, usam o negão de uma forma carinhosa e também tenho ciência de quando querem me difamar.

Tenho como referência vários negros. Leônidas da Silva, o pai de bicicleta no futebol, era exaltado como o Diamante Negro. Tarciso, do Grêmio, orgulhosamente era chamado de Flecha Negra. Eusébio, ídolo português, era enaltecido como o Pantera Negra. Escurinho, craque do Internacional na década de 1970, nunca se ofendeu por ser chamado por este apelido. Ainda há inúmeros exemplos em outros setores, como Mano Brown, Neguinho da Beija-Flor e BNegão na música.

Agora, é racismo se continuarmos a chamar os artistas pelos seus nomes? Ou seremos "cancelados" se usarmos Preta Gil, Negra Li, Nego do Borel...?

As pessoas estão com medo, receio de pronunciar frases rotineiras e codinomes como estes porque não sabem se estão sendo politicamente corretos. Claro, há um limite, diferenças na entonação e no contexto.

Sou lembrado pelo episódio que ocorreu na Copa Libertadores de 2014, no Peru, quando defendia o Cruzeiro e a torcida do Real Garcilaso imitava macacos quando eu tocava na bola. Aquilo não me abalou, segui fazendo o meu trabalho. Lógico, é uma falta de respeito, um crime e algo lamentável. Mas a minha batalha é mostra que podemos vencer, independentemente da cor da pele, do sexo, da idade, da etnia...

Temos que ter um cuidado muito grande com o caminho que as coisas estão tomando. As pessoas estão até com medo de conversar, há um constrangimento. Hoje tudo é bullying. Estão criando um distanciamento nas relações humanas devido aos tantos limites impostos.

Certo dia, um amigo de longa data, que sempre me ajudou em inúmeras situações, veio falar comigo e chegou a engasgar ao me chamar de negão, uma vez que acreditava que estava agindo errado. De bate-pronto, disse para ele seguir sendo o mesmo, pois tenho orgulho da minha cor e amo ser chamado de negão.

Fica até feio quando vejo uma pessoa se policiar na escolha das palavras, prefiro que seja natural no trato comigo. 90% das pessoas que me chamam de negão convivem comigo há décadas. Não me sinto desrespeitado, pelo contrário, eu os dei a intimidade e liberdade para isso.

Tenho total consciência que irei desagradar muitos por causa desta minha linha de raciocínio, pois se tornou comum odiar o outro que expõe uma opinião contrária.

2020 foi o ano de contorcer ideias e palavras, de achar que sempre há uma mensagem negativa. É preciso ficar atento ao momento da comunicação, conhecer o fato e até o histórico da situação antes de apontar o dedo ao afirmar racismo, fascismo, machismo, sexismo e misoginia.

Vi, há alguns dias, um treinador de futebol ser acusado de machismo por discordar da análise de uma repórter após um jogo. Sem ter em conta o sexo, há profissionais que sabem muito bem esmiuçar uma partida, mas também há outros que comentam sem embasamento, que pecam ao refletir sobre o que ocorreu ao longo de 90 minutos. E foi o que aconteceu naquele caso. Na minha opinião, não houve machismo, e sim um simples debate sobre táticas de jogo.

2020 foi o ano do fim da compreensão e do perdão. Esqueceram que o ser humano é sujeito a falhas. A mensagem que temos com isso é que, se falhar vai ser cancelado, se falhar não serve mais, se falhar não será mais consumido... Mas, óbvio que vamos errar, pois melhoramos com os tropeços.

2020 foi o ano em que fomos podados até no entretenimento. Gosto de todos os gêneros musicais, mas, por exemplo, se eu falar que não escuto funk, vou ouvir que sou contra a favela, que sou preconceituoso. Não temos conhecimento universal nem somos obrigados a consumir de tudo.

Como qualquer cidadão, também estou sujeito a erros. E, obviamente, também fui intolerante em relação às opiniões contrárias às minhas ao longo de 2020. Levanto a mão e admito as minhas falhas, portanto, desejo trabalhar mais este meu lado para ouvir e respeitar as ideias dos demais.

Que em 2021 possamos ter a liberdade de termos opiniões diferentes.

Quem em 2021 tenhamos a capacidade de conhecer, de verdade, o ponto de vista alheio.

Que em 2021 possamos dialogar.

Que em 2021 retomemos a empatia.

*Com colaboração de Augusto Zaupa