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Tinga

Deficiência sem exclusão

Tinga, ex-jogador de Inter e Cruzeiro, abre o sorriso durante palestra - Reprodução/Twitter
Tinga, ex-jogador de Inter e Cruzeiro, abre o sorriso durante palestra Imagem: Reprodução/Twitter

30/07/2020 04h00

Nos dois últimos anos, tive uma agenda grande de palestras. Uma delas me chamou a atenção por causa de uma situação especial. Aconteceu em junho de 2019, momentos antes de iniciar um evento no interior do Rio Grande do Sul, quase na fronteira com o Uruguai. O Sandro, que trabalha comigo, me contou que havia na plateia duas meninas com a camiseta do Internacional e que eram deficientes auditivas. A mãe de uma delas iria traduzir em libras o que eu falasse.

O aviso era para que eu não estranhasse a cena em meio a um público de mais de cem pessoas.

Aquilo mexeu muito comigo. Depois da palestra, as conheci. Me revelaram que eram muito fãs do meu trabalho e torcedoras fanáticas do Inter. Elas acompanharam a minha carreira como jogador, mas não tiveram acesso ao meu trabalho após a minha aposentadoria. Aquilo ficou na minha cabeça. Me remoí dizendo para mim mesmo que, se eu soubesse algum sinal de libras, poderia ter me comunicado um pouco mais com as meninas.

Talvez você não saiba, mas é incorreto usar o termo surdo-mudo. Não significa que o deficiente auditivo também seja mudo. A mudez é uma outra deficiência e não é comum ver as duas situações ao mesmo tempo. A realidade é que muitos surdos acabam não desenvolvendo a fala e, consequente, se tornam excluídos.

Cerca de 80% dos surdos de todo o mundo têm baixa escolaridade e problemas de alfabetização, segundo dados da WFD (Federação Mundial dos Surdos, na sigla em inglês).

E, claro, a situação no Brasil não é diferente. A maioria dos 10 milhões de deficientes auditivos não compreende bem o português por ter a libras como primeira língua. A exclusão é ainda maior quando percebemos que apenas 1% dos sites brasileiros têm acessibilidade em libras.

Quando idealizei o "AÇÃO TRANSFORMA+" pensei em dar a oportunidade para que homens e mulheres tivessem a possibilidade de transformar suas vidas. Decidi, então, destinar também o curso para deficientes auditivos na plataforma. A minha ideia de inserção se reforçou durante a pandemia, ao ver lives em que artistas utilizaram o serviço de libras para ajudar na comunicação.

Mas o que mais me chamou a atenção foi que durante estes meses de quarentena em casa fiz vários cursos gratuitos de bancos, órgãos governamentais e empresas, e em nenhum deles havia a possibilidade de acompanhar as aulas onlines por meio de sinais de libras.

Depois deste caso no interior do Rio Grande do Sul, conheci a Ana Beatriz Seitz Pacheco, que é intérprete de libras. A história dela também mexeu comigo, porque, apesar de ela não ter nascido com esta limitação, é casada com um deficiente auditivo. A Ana me mostrou que há uma comunidade muito grande que gostaria de participar de cursos como o meu e ter mais oportunidades.

Como eu sou uma pessoa que pergunta muito, porque acredito que as perguntas movem o mundo, aprendi bastante com a Ana. Achava que a legenda em vídeos, quando usada, cobria essa deficiência na comunicação e que era algo satisfatório. Mas ela me revelou que não era o suficiente, porque boa parte comunidade surda é analfabeta em letras porque não foi estimulada. Então, a linguagem dos sinais potencializa este alcance.

Também decidi aprender com a Ana, através de duas aulas semanais, os sinais de libras para que eu possa aprimorar a minha comunicação com esta parte da nossa sociedade. Tenho prazer em ajudar a transformar e faço o máximo para aprimorar os meus cursos e plataformas.

Gostaria de já ter tido este contato com deficientes auditivos quando fui jogador profissional. Nos quase 20 anos em que vivi a rotina diária do futebol, nunca tive contato com algum atleta surdo ou com limitação auditiva. Acredito que exista um número baixo de pessoas nos esportes de alto rendimento, principalmente no caso do futebol, talvez por falta de estímulo.

Gustavo Peralta mostra camisa do Palmeiras após assinar contrato - Twitter/Reprodução - Twitter/Reprodução
Gustavo Peralta mostra camisa do Palmeiras após assinar contrato
Imagem: Twitter/Reprodução
Em 2019, o Palmeiras contratou o meia-atacante paraguaio Gustavo Peralta para jogar no time sub-20 e, neste ano, trouxe a Stefany Krebs, que é da seleção brasileira, para jogar na equipe feminina. Se eu tivesse tido a oportunidade de ter trabalhado com o Gustavo ou com a Stefany, teria explorado o máximo para aprender sobre o mundo deles e sair dali com alguma transformação. E, claro, ensinar algumas coisas também para que os ajudassem na adaptação.

Acredito que os atletas e demais profissionais que trabalharam ou trabalham com o Gustavo e com a Stefany extraíram desta experiência exemplos importantes para entender as dificuldades alheias. Hoje, estamos nos conectando cada vez mais, e isso nos ajuda a diminuir estas barreiras para que possamos nos aproximar.

É preciso salientar, no entanto, que o futebol é muito 'cantado', como costumamos dizer. Muitos não percebem, mas falamos muitas gírias para chamar a atenção do colega de time para o posicionamento. Basta prestar atenção nestes jogos sem torcida após a paralisação dos campeonatos para notar o quanto as partidas são repletas de gritos. Aqui no Brasil até que é mais tranquilo, porque quase todos falam o português, mas já vivi situações na Alemanha que tinham cinco jogadores de diferentes nacionalidades dentro do campo.

É importante ressaltar ainda que os sinais de libras não são universais.

Muitas pessoas não têm noção, mas em 90 minutos de uma partida, um jogador fica, no máximo, 2 minutos com a bola no pé. Divida estes 90 minutos por 22 atletas para se ter uma noção da matemática. As ações muitas vezes são tomadas após conversas e gritos para o posicionamento do jogador.

Por outro lado, também há muitos sinais, o que poderia fazer com que estes atletas com deficiência auditiva tivessem vantagem, uma vez que eles têm uma maneira de percepção muito grande. Faz parte do futebol você tentar enganar o adversário com um gesto, um olhar.

Acredito que estas barreiras na comunicação irão cair e quero ver isso acontecer.

Tive várias transformações nestes meus 42 anos. A minha vida foi transformada por muitas pessoas, muitos amigos que acreditaram em mim e não se importaram com as minhas deficiências intelectuais. Este voto de confiança para encarar o futebol e o ramo do empreendedorismo me ajudam a tentar inserir outros que, em muitos casos, foram deixados de lado, não só no futebol como na vida em geral.

* Com colaboração de Augusto Zaupa