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Eliana Alves Cruz

A ilusória neutralidade olímpica e as vozes que não querem calar

22/09/2020 04h00

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No último final de semana tivemos mais um capítulo do fantástico mundo paralelo do esporte nacional. A Confederação Brasileira de Vôlei (CBV) divulgou nota repudiando a manifestação política feita pela jogadora de vôlei de praia, Carol Solberg, que depois de vencer a disputa pelo terceiro lugar na etapa do Circuito Banco do Brasil, em Saquarema (RJ), não pensou meia vez para dizer em alto e bom som na transmissão da Sportv: "Fora Bolsonaro!".

Há algumas colunas atrás disse aqui que a indústria esportiva se vê fora do mundo que a criou. Esta afirmação consegue ser verdade e mentira ao mesmo tempo. Explico: Ela é verdadeira — na medida em que o artigo 50 da Carta Olímpica, que norteia todos os estatutos de instituições, tenta preservar uma neutralidade política nos eventos proibindo as manifestações (sejam falas ou gestos) dentro das competições — e é falsa, pois a mesma regra permite que os atletas se manifestem depois das disputas em entrevistas, redes sociais, etc.

No entanto, se entidades esportivas no exterior relutam para enfrentar os novos tempos, no Brasil a reação não parte apenas das altas cúpulas. O Comitê de Atletas da CBV também se manifestou contrário ao ato de Carol Solberg, sem perceber o "tiro no pé" que representa lutar para que uma lei da mordaça vença entre eles. Esta é uma posição mais radical que a do já discutível Artigo 50, que trata apenas do que acontece dentro dos limites do evento e não em posicionamentos depois que soa o apito final.

Como o planeta — os dirigentes esportivos queiram ou não — gira, o tempo passou e as pressões por mudanças no artigo 50 são um dos centros dos debates envolvendo a próxima edição dos Jogos Olímpicos. Comissões de Atletas em toda a parte têm um argumento fortíssimo para isto: O Comitê Olímpico Internacional não tem o poder de parar a história e a regra não impediu que contextos políticos pegassem o maior evento do mundo em cheio.

O esporte, não apenas reflete a política, como se beneficia enormemente dela. A hipocrisia do Artigo 50 é escandalosa. Não há um grande evento esportivo que não precise de alianças com governos, que não feche os olhos para ditaduras, que não interfira na vida de cidades e países. Nazismo, Guerra Fria, luta anti-racista nos EUA, conflitos Palestina-Israel. Todos estes eventos planetários (e inúmeros outros) tiveram nos Jogos Olímpicos um palco. A neutralidade é uma falácia e as vozes não querem calar.

No Brasil, todas as entidades esportivas têm os pés fincados nas máquinas governistas. Carol Solberg, julgando estar numa democracia, pois viu colegas na modalidade manifestarem apoio ao atual governo em diversos eventos oficiais, também decidiu se posicionar e involuntariamente expôs a dose alta de ditadura que ainda corre nas artérias do esporte brasileiro.

Como não bastasse uma nota repudiando algo que é um direito constitucional e, curiosamente, um direito olímpico da atleta de emitir sua opinião em entrevista pós-evento, a Confederação Brasileira de Vôlei correu para elaborar um texto em que afirma que atitude da jogadora "denigre a imagem do esporte", mostrando que não consegue estar em consonância com o século 21 nem mesmo no vocabulário, visto que a expressão "denegrir", ou seja, "tornar negro" no sentido de sujar, manchar, macular é altamente racista.

Acertar os ponteiros do relógio brasileiro que estão parados num passado ditatorial e serviçal também é tarefa a ser executada dentro das quadras, campos, piscinas... Pois sim, o esporte é parte da história do mundo.