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Aposentado por doença, ex-campeão Sertão vive de futebol e dominó no interior da BA

Valdemir Pereira, o Sertão, tem vida pacata em Cruz das Almas, aposentado pelo INSS - Maurício Dehò/UOL Esporte
Valdemir Pereira, o Sertão, tem vida pacata em Cruz das Almas, aposentado pelo INSS Imagem: Maurício Dehò/UOL Esporte

Maurício Dehò

Em Cruz das Almas (BA)

13/05/2010 07h03

"SERTANEJO" EM SEU TERRITÓRIO

  • Maurício Dehò/UOL Esporte

    Alegre e receptivo, Sertão mostra a casa, que tem destaque claro para seu cinturão, sobre a televisão

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    Sertão segue em Cruz das Almas, sem voltar a São Paulo há 3 anos e hoje aposentado pelo INSS

  • Maurício Dehò/UOL Esporte

    Cartaz da luta pelo título mundial decora a parede

O dia 13 de maio de 2006 marcou o início da decadência de Valdemir Pereira, o Sertão, quarto campeão mundial da história do boxe brasileiro. Há exatos quatro anos, o baiano perdeu seu cinturão dos penas, e nunca mais subiu em um ringue. Ele voltaria no ano seguinte a lutar, em eliminatória para retomar o trono, mas exames médicos e uma doença da qual até hoje não fala deram fim ao sonho e à vida como pugilista.

Longe dos holofotes, Sertão hoje vive de forma humilde na simples cidade de Cruz das Almas, situada a duas horas ao Oeste de Salvador. Trocou as luvas pelas chuteiras, o ringue por uma mesa de dominó e as ricas bolsas que esperava ganhar com mais frequência por uma aposentadoria mensal pelo INSS, devido à sua condição. Foi esta a realidade que a reportagem do UOL Esporte testemunhou em visita ao ex-campeão mundial no fim de abril.

Sertão foi campeão do mundo em janeiro de 2006, ao vencer o tailandês Fahprakorb Rakkiatgym por pontos, nos EUA. A festa, no entanto, durou pouco. Menos de quatro meses depois, cedeu o título para o norte-americano Eric Aiken, ao ser desclassificado por dar golpes baixos no desafiante.

O nocaute sofrido em sua vida veio quando teria nova chance contra Aiken, em março de 2007. Já nos Estados Unidos, um exame anunciado pelos organizadores como “inconclusivo” o impediu de lutar. Na volta ao Brasil, dizendo-se abandonado, preferiu voltar à cidade do Recôncavo Baiano, ao conforto da casa dos pais, e deixou tudo para trás. Inclusive dois filhos em São Paulo, dos quais nem ao menos se despediu.

Sertão não fala de sua doença, despista. Em entrevista ao jornal Lance em 2008, disse que teve hepatite C, doença infecciosa, e negou ter Aids. Agora, não dá nome ao seu mal, mas culpa a vida pós-título pelo que lhe aconteceu.

“Sempre fui um cara caseiro, mas comecei a entrar na farra e, você sabe, esse negócio de fama, dinheiro e mulher... Eu perdi o foco por causa disso aí”, conta Sertão, na casa de sua mãe, que guarda alguns de seus prêmios no boxe. “Tinha mulher em casa, em São Paulo, mas outras quatro na rua. Não era de beber e usar droga. A minha droga forte era mulher. Elas mexem com a cabeça do cara. E, quando fui tirado da luta (contra o Aiken), foi um desastre.”

A PERDIÇÃO

Sempre fui caseiro, mas comecei a entrar na farra e, você sabe, esse negócio de fama, dinheiro e mulher... Perdi o foco. Não era de beber e usar droga. A minha droga forte era mulher. Elas mexem com a cabeça do cara

SERTÃO, sobre os problemas pessoais

O cruz-almense não esconde o medo do preconceito, ainda mais morando em uma cidade de cerca de 60 mil habitantes, onde os assuntos correm rapidamente.

“Não gosto de comentar (a doença), porque as pessoas só gostam de criticar. Gosto de levantar a cabeça e ter forças, como aquele jogador de basquete, Magic Johnson [jogador que se afastou da NBA com Aids, mas voltou a jogar]. Tem muita gente que tem doença pior que a minha”, lembra ele.

O ex-pugilista aproveita um pouco da lembrança de seu feito, que expôs Cruz das Almas como a “Cuba brasileira”, pelo potencial de seus lutadores.

Ele chegou a dar aulas de boxe em um ginásio local, mas a prefeitura preferiu afastá-lo das atribuições, também sem fazer referência à doença do ex-lutador.

“Ele foi acometido por um problema de saúde e nós conseguimos estabelecer uma relação com o INSS, de modo que o básico, o mínimo, ele consegue ter. (Ele recebe) a medicação permanente, de uso continuado, que melhorou muito o estado de saúde e recebe uma pensão do INSS. Mas é muito menos do que ele mereceria ter como um campeão mundial”, explica o prefeito de Cruz das Almas, Orlando Peixoto Pereira Filho.

APÓS BRIGA NA VÉSPERA, TÉCNICO RETOMOU AMIZADE PELA INTERNET

  • Reuters

    Servílio de Oliveira (e) era o responsável pela carreira de Sertão; Popó acompanhou à conquista

    Uma semana antes de viajar para o que seria seu combate de retomada na luta pelo título, em março de 2007, Sertão perdeu ninguém menos que o técnico Ivan de Oliveira. Os dois discutiram durante um treino e, em meio a reclamações de Sertão quanto a Servílio de Oliveira - pai de Ivan e empresário -, o treinador decidiu que não viajaria.

    Após a volta de Sertão à Bahia, houve um novo contato. Mas não fisicamente. A amizade renasceu online. "Eu o encontrei no Orkut e vi que não podíamos esquecer o que passamos por uma briga", conta Ivan. "Sua caminhada foi árdua e quando você consegue alguma coisa, vê todo mundo te rodeando e fica meio perdido se não tiver estrutura. Ele foi o melhor atleta que já tive."

Sertão não confirma receber dinheiro, mas sim os medicamentos, que toma duas vezes ao dia. “Já me falaram que estou mais bonito, mais forte”, diz. Sem o trabalho como professor, ele improvisa.

“Hoje não vivo de nada. Às vezes vêm três ou quatro pessoas para quem eu dou aula particular e me dão uns 20 reais por mês. Infelizmente no Brasil as pessoas só se lembram de você depois que você está morto”, lamenta ele, que mesmo com a reclamação é parado pelas crianças na rua, que querem ser “como o Sertão”. "Quando vejo esses meninos dando soco pela rua, digo que eles vão ser melhores que eu".

O lar do baiano é um mar de lembranças da carreira no boxe. Cartazes como o da luta pelo título, fotos com amigos como Popó e troféus estão expostos. Em destaque, logo acima da TV, os cinturões: um latino, da AMB, e o que mudou sua carreira para o bem e para o mal, o mundial da FIB.

“Meu dia é não ficar muito em casa, porque fico muito triste, olhando para as minhas fotos”, diz o baiano, calçando chuteiras e meiões.

A pelada com os amigos em uma praça está entre as principais distrações, além de longas partidas de dominó no barzinho logo em frente, a apenas dois quarteirões de sua casa. De vez em quando, assiste a um boxe pela TV.

OS NÚMEROS DE SERTÃO

  • 35

    ANOS

    Tem o aposentado pugilista, que nesta 5ª completa quatro sem lutar

  • 24

    VITÓRIAS

    Teve Sertão durante sua carreira, com 15 nocautes e só uma derrota

  • 75

    MIL DÓLARES

    Foi a bolsa de Sertão na luta do título - só uma fração foi para ele

“Sempre que passa luta eu me emociono, porque me vejo no ringue lutando. Mas fazer o quê? Fico me perguntando, por que comigo? Mas pode acontecer com qualquer pessoa, a vida é assim mesmo”, filosofa, sem mostrar abatimento apesar das duras palavras.

A maior tristeza é quando fala sobre o que deixou para trás, os filhos Cássio e Laura, de quem não se despediu em São Paulo e nunca mais viu. Ele tem um terceiro filho, Kelso, em Cruz das Almas.

“Mas para mim não tem sido complicado, não. Tem doença que está matando. Outros estão matando para sustentar o vício das drogas. E eu não, estou aqui tomando meus remédios, e pronto. Sigo com minha vida, sou um cara alegre, feliz. Mesmo se não quiserem, eu faço parte do boxe. Esse nome Sertão, campeão do mundo, ninguém nunca vai tirar", conclui Valdemir, antes de montar na bicicleta para voltar a jogar bola e retomar sua pacata e quase anônima vida em Cruz das Almas.