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Iemanjá: como a divindade africana ganhou feição branca no Brasil?

Devotos comemoram dia de Iemanjá em 2 de fevereiro - JOá SOUZA/FUTURA PRESS/ESTADÃO CONTEÚDO
Devotos comemoram dia de Iemanjá em 2 de fevereiro Imagem: JOá SOUZA/FUTURA PRESS/ESTADÃO CONTEÚDO

Colaboração para Ecoa

02/02/2023 04h00

A homenagem a Iemanjá, celebrada anualmente no dia 2 de fevereiro em Salvador, na Bahia, compõe o calendário das festas populares do estado. No entanto, uma contradição chama a atenção: por que a representação mais comum da entidade no Brasil é branca, se ela é originalmente negra?

Como uma divindade africana, espera-se que Iemanjá seja representada como uma mulher negra. A representação, porém, com os anos passou a ser em forma de mulher branca e de cabelos pretos.

Para estudiosos, esse embranquecimento pode ser visto como uma violência cultural, resultado de uma construção racista que tornou suas feições mais "europeias".

Carlos Silva Jr., integrante da Rede de Historiadoras Negras e Historiadores Negros, coletivo de mais de 300 profissionais em todo o país, afirma que a descaracterização da imagem de Iemanjá não se trata apenas de sincretismo, termo que durante muito tempo se fixou para expressar a suposta fusão entre santos católicos e divindades africanas.

Há nesse aspecto um elemento do racismo que alcança o universo religioso, ao retirar de Iemanjá a sua filiação africana -- e sua cor. O embranquecimento de Iemanjá ao longo dos anos pode ter contribuído, em grande medida, para a sua popularidade entre diferentes grupos sociais.
Carlos Silva Jr., integrante da Rede de Historiadoras Negras e Historiadores Negros

Sincretismo e associações

  • Na Bahia, Iemanjá já foi associada a Nossa Senhora do Rosário e também a Nossa Senhora da Conceição da Praia.
  • Em outras partes do Brasil, a entidade é associada a Nossa Senhora da Glória e a Nossa Senhora dos Navegantes.
  • Iemanjá também é confundida com Janaína, divindade da cultura dos povos originários do Brasil.

Iniciativas buscam restabelecer a "negritude" de Iemanjá. No bairro de Rio Vermelho, em Salvador, uma escultura de uma sereia negra representa a divindade. Já na cidade de Vitória (ES), uma estátua de 3,60 m de altura teve sua cor alterada em 2017, após pressão de representantes das religiões de matriz africana e também do Conselho Municipal do Negro.

Os debates por uma representação mais fidedigna de Iemanjá extrapolam os limites de categorias simplificadoras como "pautas identitárias", como tem-se tentado enquadrar os legítimos questionamentos sobre o racismo no Brasil. Estão incluídos no lastro da discussão sobre a garantia de cidadania num Estado laico, mediante o respeito à diversidade religiosa e às religiões de matriz africana. Afinal, Iemanjá perderia a sua estima e apelo popular se fosse representada como uma mulher negra?
Carlos Silva Jr.

*Com texto de Carlos Silva Jr., integrante da Rede de Historiadoras Negras e Historiadores Negros, publicada em 02/02/2022