Topo

WhatsApp de cocô? 'Cocôzap' une moradores da Maré em luta por saneamento

Jovens da Maré se reúnem para pensar estratégias de enfrentamento às mudanças climáticas - Patrick Marinho
Jovens da Maré se reúnem para pensar estratégias de enfrentamento às mudanças climáticas Imagem: Patrick Marinho

Rafael Burgos

Colaboração para Ecoa, em São Paulo

03/09/2022 06h00

Poucos imaginariam que, da união entre o cocô e o WhatsApp, nasceria uma iniciativa de grande impacto social para moradores de comunidades. O Cocôzap, projeto do Data Labe, laboratório de dados e narrativas localizado no Complexo de Favelas da Maré, no Rio de Janeiro, tem usado a tecnologia em busca de melhorar as condições de vida para os quase 140 mil moradores da região.

Nascido em 2018 após reconhecimento num prêmio internacional de inovação tecnológica, o Cocôzap funciona como um canal de denúncia, debate e proposição sobre saneamento básico, abastecimento de água e coleta de lixo na Maré.

As fotos, vídeos e depoimentos enviados pelos moradores compõem uma rica base de dados que foi construída ao longo dos últimos anos, a fim de complementar as informações públicas a respeito dos desafios de saneamento básico da comunidade, como bolsões de lixo, esgoto a céu aberto, falta de água e vetores de doenças transmissíveis (ratos, baratas, dentre outros).

Mas o projeto se propõe a ir além da geração de dados, se fazendo presente no cotidiano do bairro. A partir de reuniões mensais com moradores, escolas, postos de saúde e outros, a equipe difunde o canal de denúncias, em busca de construir um debate permanente e que dê visibilidade às queixas dos moradores.

Gilberto Vieira, cofundador do Data Labe, explica como o Cocôzap se insere no contexto maior do laboratório, que traz em seu DNA a produção de novas narrativas por meio de dados.

"O Data Labe surgiu muito da necessidade de levantar dados públicos e de produzir dados que não existiam sobre as favelas e seus moradores. E hoje a gente trabalha com algumas frentes que giram em torno dessa cultura de dados, desde o jornalismo, passando por formações em comunicação, geração cidadã de dados e, também, a parte de incidência política", explica.

Para Gilberto, a relevância de iniciativas como o Cocôzap se justifica pela incapacidade de compreender a realidade dos moradores a partir dos dados oficiais sobre saneamento no estado do Rio. Segundo ele, é preciso lutar para que as políticas públicas sejam pensadas a partir de um outro lugar. E a geração de novos dados caminha nessa direção.

gilberto vieira - Divulgação - Divulgação
Gilberto Vieira, cofundador do Data Labe
Imagem: Divulgação

"Os dados oficiais de saneamento não conseguem dar conta da realidade da favela. Aqui no Rio de Janeiro, por exemplo, a maioria dos dados indica que a cobertura da coleta seletiva chega a 90% em todo o estado. Basta andar 5 minutos numa favela para você ver que isso não é verdade", destaca.

'Embaixadores': uma maior presença nas favelas

Com as dificuldades impostas pela pandemia, o trabalho de base na comunidade teve de se reinventar: foi a impossibilidade de manter contato pessoal junto aos moradores em razão do distanciamento social que levou ao surgimento dos embaixadores do Cocôzap, quatro jovens moradores de diferentes favelas dentro do complexo, que carregaram a missão de alimentar o banco de dados do projeto enquanto vigoravam as restrições sanitárias.

Como explica Clara Sacco, cofundadora e coordenadora do Data Labe, esse movimento acabou se mostrando decisivo para estreitar laços entre o projeto e os moradores das 16 favelas que formam o Complexo da Maré.

"Em meio a todas as dificuldades, a pandemia foi um momento que aumentou ainda mais a importância dos nossos dados, porque existe uma relação direta entre saneamento básico e saúde. Por isso, nós convocamos moradores da Maré para exercerem um papel mais ativo: para além de receber as queixas das pessoas, nós passamos a gerar nossos próprios dados", afirma.

Morador da Maré lê carta de saneamento - Patrick Marinho - Patrick Marinho
Morador da Maré lê carta de saneamento
Imagem: Patrick Marinho

Com o desafio de se fazer presente nas diferentes partes do território num contexto de emergência sanitária, os embaixadores abriram o caminho para uma expansão importante do Cocôzap, que, em 2021, foi certificado pela Fundação Banco do Brasil como tecnologia social replicável, o que permitiu abrir diálogo com outras organizações que querem seguir o mesmo caminho.

"Foi muito legal ver esse resultado dos embaixadores, porque eles realmente conseguiram cobrir a Maré toda, andando em todas as ruas do complexo. Hoje, com a situação mais estável da pandemia, eles já estão muito mais envolvidos na mobilização, auxiliando no nosso processo formativo e no diálogo com nossas redes dentro do território", afirma Clara.

A disputa pelas plataformas

Mas por que o WhatsApp? Rede social favorita dos brasileiros, o aplicativo de mensagens é hoje utilizado por 92% da população. O uso gratuito e ilimitado oferecido por planos básicos das operadoras permitiu que a rede social se difundisse em comunidades como a Maré, o que, para o Data Labe, representou uma oportunidade.

"O WhatsApp é uma ferramenta muito poderosa de comunicação dentro das favelas. As pessoas se protegem por meio dela, considerando os abusos e violações de direitos que acontecem diariamente. Os grupos de zap dos moradores são parte do nosso kit básico de sobrevivência", lembra Clara.

É nesse ambiente, da fronteira digital e suas possibilidades de gerar transformação, que os criadores viram a necessidade de travar uma disputa cada vez mais central na atuação política de populações subalternas.

"Temos divergências políticas com as grandes empresas de tecnologia — as chamadas Big Techs —, mas isso não quer dizer que sejamos 'antitecnológicos'. Pelo contrário, a gente trabalha com tecnologia, acreditando que as tecnologias podem ser mais livres e mais bem distribuídas. No contexto de hoje, mais interconectado, elas têm um grande poder de determinar como os movimentos sociais estão organizados", ressalta Gilberto.

Expandindo o legado

Apesar de dificuldades de diálogo junto ao poder público nos últimos anos, o investimento nos embaixadores e o engajamento crescente dos moradores da Maré permitiram ao Cocôzap triplicar sua base de dados, vislumbrando agora um novo passo: produzir informações sobre os problemas domésticos das comunidades.

A partir de uma pesquisa amostral domiciliar em parceria com o Laboratório de Estudo das Águas Urbanas (LEAU), da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), o projeto quer discutir os problemas menos visíveis da comunidade, numa abordagem que complementa o trabalho inicial, mais focado no lado de fora das casas.

Ao olhar para trás, Clara conta o seu maior orgulho: a mobilização política do território da Maré em torno do tema do saneamento. "Por mais que seja difícil, tanto moradores como outras organizações mostram que, hoje, estamos mais prontos enquanto comunidade pra exercer essa incidência nesses temas. A luta pelo saneamento é histórica aqui dentro da comunidade, mas agora já estamos num outro nível de articulação — ancorada em dados e informações", finaliza.