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Alvo de racismo, este médico negro foi quem conservou coração de D. Pedro I

Pintura de Dom Pedro I - Reprodução
Pintura de Dom Pedro I Imagem: Reprodução

Rafael Burgos

Colaboração para o UOL, em São Paulo

31/08/2022 06h00

Preservado ao longo de quase dois séculos na Igreja da Lapa, na cidade do Porto, em Portugal, o coração de D. Pedro I veio ao Brasil na última semana, como parte das comemorações pelos 200 anos de Independência. Mas, por trás de toda essa arquitetura, está o esforço de um personagem pouco conhecido dos livros de história: eu falo de João Fernandes Tavares, médico brasileiro responsável por tratar o imperador em sua luta contra a tuberculose e por conservar o seu coração.

De família pobre, Tavares estudou medicina na Europa graças à ajuda de um tio, que trabalhava como mestre de obras. Sair do Brasil, para ele, não foi exatamente um plano de vida, mas a única alternativa possível. Apaixonado por uma moça cuja família não via com bons olhos o relacionamento com um homem negro, Tavares acabou denunciado pelo pai de sua parceira após planejar uma fuga. Intimado a assentar praça no Quartel das Tropas de Lima, no Rio de Janeiro, capital imperial, o rapaz entendia não ter vocação para o Exército, e acabou decidindo por tentar a vida fora do país.

Estabelecido em Portugal, Tavares formou-se em medicina, defendendo o doutorado na Faculdade de Medicina de Paris em 1823. "Ele foi um dos poucos negros de sua época a seguir carreira em posições como essa, algo reservado à elite branca de então", afirma o escritor Paulo Rezzutti, autor de livros sobre o primeiro reinado e biógrafo de D. Pedro e da imperatriz Leopoldina.

'Dr. Canudo'

Segundo Rezzutti, Tavares pode ser lembrado como um dos primeiros médicos brasileiros a ter utilizado um estetoscópio, conhecido instrumento utilizado para a escuta do coração, além de outros ruídos corporais. De volta ao Brasil, foi em sua clínica no Rio de Janeiro que o médico ganhou o apelido de 'Dr. Canudo', após passar a utilizar, com frequência, aquele instrumento que se assemelhava a um canudo de madeira, pelo seu formato comprido e cilíndrico, bem diferente de seus moldes atuais.

Novidade à época, o estetoscópio de Tavares, trazido com ele de Paris, foi o primeiro de que os cariocas tomaram conhecimento. "Há uma hipótese de que ele teria sido o primeiro médico brasileiro a trazer um estetoscópio para o país. Ainda hoje, inclusive, esse objeto se encontra no Museu da Academia Nacional de Medicina, no Rio de Janeiro", lembra Rezzutti.

O pesquisador Paulo Rezzutti - Paulo Rezzutti/Arquivo Pessoal - Paulo Rezzutti/Arquivo Pessoal
O pesquisador Paulo Rezzutti, autor de livros sobre o primeiro reinado e biógrafo de D. Pedro I e da imperatriz Leopoldina.
Imagem: Paulo Rezzutti/Arquivo Pessoal

O ingresso nos círculos da Corte Portuguesa

Profundo conhecedor de venenos — o que deporia contra ele no futuro —, Tavares ingressou nos círculos da Corte Portuguesa após curar uma negra escravizada do marquês de Baependi de uma picada de cobra. Tornou-se médico da casa da marquesa de Santos e, por intermédio dela, conheceu D. Pedro, de quem virou médico particular, seguindo o ex-imperador ao exílio e ao Cerco do Porto — episódio-chave da Guerra Civil Portuguesa que opôs os seguidores de D. Pedro e D. Miguel.

"Não há muitos registros históricos a esse respeito, mas provavelmente havia algum grau de amizade entre os dois", afirma Rezzutti sobre a relação entre D. Pedro e seu médico particular. Presença constante no círculo íntimo do imperador, foi Tavares quem fez o parto da princesa Maria Amélia de Bragança, filha única de seu casamento com a imperatriz Amélia de Leuchtenberg.

Vítima de racismo

Com a morte de D. Pedro, em vez do reconhecimento pelos cuidados dedicados ao imperador, Tavares terminou vítima daquilo que, ironicamente, havia o aproximado da Corte: sua habilidade com venenos. "A morte do D. Pedro gerou uma consternação tão grande que, logo, tentaram achar um bode expiatório. E quem poderia ser? O médico brasileiro", destaca Rezzutti, chamando atenção para a alta popularidade de D. Pedro em Portugal no contexto de sua morte.

Apelidado de 'O Libertador', o ex-regente de Portugal, comandante dos liberais, havia acabado de vencer os absolutistas leais a D. Miguel na Guerra Civil Portuguesa, levando à pacificação do país. Por essa razão, lembra o pesquisador, teorias conspiratórias que elencavam um mandante de sua morte ganharam relativo sucesso em terras lusitanas, o que deu lugar a preconceitos históricos contra brasileiros na figura de Tavares, acusado de envenenar D. Pedro.

"Antes mesmo da Independência, há vários registros de como os brasileiros eram tratados na Europa, principalmente em Portugal, onde, já naquela época, havia um 'bullying' contra brasileiros que fossem estudar em Coimbra, por exemplo. O dr. Tavares foi mais um desses casos", recorda Rezzutti, destacando a xenofobia e o racismo que vitimaram Tavares.

Mesmo após ser defendido das acusações pela rainha Maria II de Portugal, que concedeu a Tavares o título de cavaleiro de Nossa Senhora de Vila Viçosa, e por d. Amélia de Leuchtenberg, que lhe garantiu o título de visconde de Ponte Ferreira, a ferrenha perseguição contra o médico brasileiro em Portugal o fez retornar ao Brasil, estabelecendo-se em Niterói.

Um personagem esquecido pelos livros

Em terras brasileiras, acusações e desconfianças continuaram a acompanhar Tavares, que permaneceu afastado dos serviços da Corte por D. Pedro II. Em artigo publicado em 7 de abril de 1853 no Jornal do Comércio, no Rio, Tavares retomou a questão que o atormentava: "Há quase dezenove anos que sobre mim pesa uma calúnia horrorosa e até hoje deferi em justificar-me, convencido que vivi sempre de que o bom senso universal refutaria tão atroz e absurda suspeita julgando impossível a existência de um tal crime", escreveu o médico.

Personagem pouco conhecido nos livros de história, o dr. Tavares carrega, ainda, em seu currículo o título de cofundador, em 1838, do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, a mais antiga entidade de fomento à pesquisa do país, além de, também, ter participado da criação do Imperial Instituto Médico Fluminense, em 1867, tendo sido seu primeiro presidente.

Em pleno bicentenário de nossa Independência, sua trajetória ainda clama por reconhecimento. "Só o fato de ele ter sido um dos primeiros negros a estudar medicina na Europa, trazer o estetoscópio para o Brasil, ser um dos fundadores do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, já é suficiente para cobrarmos mais menções e estudos aprofundados sobre esse personagem", finaliza Rezzutti.