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O que é misoginia e como ela faz parte da sua vida sem você reconhecer?

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Giacomo Vicenzo

Colaboração para Ecoa, em São Paulo

23/08/2022 06h00

As mulheres conquistaram o direito ao voto no Brasil em 1932, quatro séculos depois de as primeiras eleições acontecerem em terras brasileiras (em 1532, para a Câmara Municipal de São Vicente) em que só homens podiam votar. A escalada de conquistas de direitos, embora tenha avançado, é um processo e ainda vemos disparidade entre os salários de homens e mulheres e o maior tempo dedicado aos afazeres domésticos em relação aos homens (IBGE).

Na construção social, atitudes sutis como chamar alguém de 'mulherzinha' ainda soa como insulto, pois geralmente fala-se no sentido de menosprezar, de dizer que alguém é mais fraco ou frágil. Essa ofensa pode estar inserida no conceito de misoginia.

Ecoa conversou com sociólogos para explicar o que é a misoginia, como ela afeta mulheres ainda hoje na sociedade e tem uma construção estrutural que separa os gêneros, desde as horas dedicadas aos afazeres domésticos até salário menores no fim do mês. Acompanhe a seguir.

O que é misoginia?

Do dicionário (definições de Oxford Languages), misoginia significa: 1. ódio ou aversão às mulheres - 2. aversão ao contato sexual com as mulheres. No conceito, engloba-se a repulsa e desprezo direcionado ao sexo feminino.

O sociólogo Marcos Horácio Gomes Dias, doutor em história social (PUC-SP), explica a misoginia na prática:

"As mulheres estão em uma sociedade dominada e centrada nos homens, que as colocam em locais de subalternidade, assim como tudo o que é ligado ao 'universo feminino' é entendido como inferior, seja seu corpo, sua inteligência ou suas emoções", exemplifica Dias.

A misoginia ainda encontra caminhos que renegam a figura da mulher geralmente associando a características mais emocionais em relação ao homem.

MIsoginia - Reprodução - Reprodução
Sufragistas se encontram com Getúlio Vargas para exigir inclusão do voto feminino no país em 1932
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"Quando alguém diz que tomou uma atitude baseada em aspectos emocionais, julga-se como 'coisa de mulher' e com menos valor. Então, há uma repulsa à imagem e a tudo o que possa representar o feminino na sociedade", explica Fábio Mariano Borges, doutor em sociologia pela PUC-SP, consultor de Inclusão da Diversidade e professor visitante da Universidade de Nottingham (Reino Unido).

"No mundo do trabalho é comum ouvir expressões que desqualificam características femininas a ponto de qualificar mulheres como homens - dizendo que agem dirigindo empresas como homens. Então, essa mulher precisa matar o feminino para assumir essa posição", aponta Borges.

Quando surge o conceito de misoginia?

Desde a Grécia antiga é possível encontrar indícios de uma sociedade que praticava atitudes misóginas, colocando as mulheres em posições sociais secundárias.

Dias lembra que o debate sobre o conceito vem à tona no século 20, e acompanha uma escalada de lutas por direitos iguais entre os gêneros e direitos humanos. "Essas lutas e reivindicações acontecem, sobretudo, após a Segunda Guerra Mundial", explica.

Termos como empoderamento, usados amplamente hoje, surgem de movimentos sociais feministas na década de 1960, nos EUA, e já apontavam um caminho de luta contra estruturas misóginas da sociedade.

MIsoginia - CarlosDavid.org/Getty Images/iStockphoto - CarlosDavid.org/Getty Images/iStockphoto
A misoginia renega a figura da mulher, associando-a a características mais emocionais e menos pragmáticas
Imagem: CarlosDavid.org/Getty Images/iStockphoto

Misoginia é estrutural?

Assim como o racismo, Dias explica que a misoginia tem uma construção estrutural na sociedade e empurra mulheres para locais de subalternidade como algo natural de sua construção.

O sociólogo enxerga que vivemos em um mundo em que é possível encontrar culturas mais ou menos misóginas. "Há autores da antiguidade que consideram as mulheres 'homens imperfeitos'. A própria menstruação era entendida como um 'defeito'. Isso resulta em uma violência simbólica, física e cultural", aponta.

"O que chama a atenção é que todas as culturas são mais ou menos misóginas. A maior parte das religiões ao redor do mundo coloca a fala da mulher como origem da discórdia, do mal, e que mulheres devem ser submissas. Atualmente, o consumo as coloca como símbolos sexuais e cria padrões de beleza rigorosos que as mulheres devem seguir para atender uma sociedade machista", completa.

Por vezes, essa estrutura é replicada em valores morais, religiosos e que tendem a ser replicados até mesmo pelas próprias mulheres. "Isso está tão enraizado que é possível ser misógino sem perceber que é, deixando a mulher vulnerável a piadas e preconceitos que criam a ideia de 'mulher direita', que vive de acordo com os parâmetros machistas", analisa Dias.

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O combate à misoginia só é possível se os homens reconhecerem que ocupam lugar de privilégio
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Já Borges lembra que o direito ao trabalho, entrada na política e até mesmo o direito de pedir o divórcio são conquistas recentes para as mulheres, o que implica estarmos em uma sociedade estruturalmente misógina e que tem instituições que replicam o machismo.

"Só na Constituição de 1988 que as mulheres passaram a ser reconhecidas como iguais aos homens em relação à isonomia jurídica, e somente em 2003 a 'falta de virgindade' da mulher deixou de ser requisito para que o homem anulasse o casamento", aponta Borges como exemplos recentes de estruturas misóginas.

Como identificar e evitar atitudes misóginas?

Indagar se alguém é misógino, sobretudo homens, considerando que a pessoa compreenda o conceito, é, na maioria das vezes, encontrar respostas negativas. No entanto, Dias explica que é comum encontrar homens dizendo que não são misóginos, mas pouco se indignando com atitudes do tipo cotidianamente.

"Muitos homens podem afirmar que não são misóginos, mas isso quer dizer que eles deveriam se indignar com mulheres sendo símbolos sexuais, ganhando menos que homens, sofrendo abusos sexuais, não estarem na política ou em menor quantidade em cargos de chefia", explica.

Para Dias, normalizar todas essas atitudes faz com que se crie uma estrutura misógina, mesmo que a pessoa em si não tenha noção disso.

O combate à misoginia se dá, sobretudo, na aceitação de homens, é preciso que eles enxerguem seus locais de privilégio na sociedade e reconheçam conquistas feministas.

"Costumo dizer que a história das mulheres é uma sucessão de lutas, enquanto a dos homens é uma sucessão de privilégios. As mulheres nasceram em uma sociedade que veio com a 'listinha' do que não se pode fazer, e isso as coloca submissas", conclui Borges.