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OPINIÃO

Mudei o que comia e agora quero te convidar a repensar a sua alimentação

Essa sou eu e um coentro orgânico cheiroso - Arquivo pessoal
Essa sou eu e um coentro orgânico cheiroso Imagem: Arquivo pessoal

Camilla Freitas

De Ecoa, em São Paulo

16/05/2021 06h00

Alimentação é muito mais do que jantar arroz e feijão. Essa foi a primeira lição que aprendi. A partir dela, veio a segunda, a mais importante. Não dá para falar de comida sem falar de dinheiro. Há cerca de um mês, resolvi mudar minha alimentação. Mas isso só foi possível porque hoje tenho acessos que nunca imaginei que teria.

O convite para escrever esse texto nasceu porque, depois de uma imersão produzindo conteúdo para o ciclo de reportagens sobre alimentação aqui em Ecoa, mudei a forma como me alimento. Antes de chegar ao fim, contudo, preciso te contar minha relação com a comida. E isso passa por minha história com minha mãe.

Nasci em São Paulo, na zona sul, em 1996. Naquele ano, a ONU declarou o distrito Jardim Ângela, vizinho ao meu, Santo Amaro, o lugar mais violento do mundo. Minha mãe, que já demorava duas horas para chegar ao trabalho no centro da cidade, tinha que retornar "correndo" antes do toque de recolher do crime organizado da região. Tentando fugir desse caos, fomos morar num conjunto habitacional do outro lado da cidade, na zona leste.

Camilla Freitas alimentação - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Quando criança, mesmo com algumas dificuldades, minha mãe nunca deixou de me fazer festas de aniversário regada de pasteis, salgados e bolo
Imagem: Arquivo pessoal

Lá, até meus dois anos, a condição de vida foi boa. O bebê Camilla conseguia comer muita papinha e tomar muito leite em pó de qualidade. Mas um divórcio conturbado e um desemprego mudaram nossas vidas.

Sem conseguir um emprego fixo, por vezes vi minha mãe pedir ajuda para vizinhos para comprar comida. Fui com ela ao mercadinho da rua para fazer uma compra fiada. Vi minha mãe recebendo, sem jeito, uma ajuda da família em cesta básica. Usei com ela a geladeira como armário porque, com frequência, cortavam a luz e a água da nossa casa.

Apesar das dificuldades, nunca passamos fome. Ou eu nunca passei. Nunca perguntei a ela se tinha ficado uma ou duas refeições sem comer nada. Ela me protegia de tal forma, que tive a ousadia de ser muito fresca para comer. Cresci com uma lista enorme de alimentos que não comia. Nada de peixe, nada de brócolis, nada de jiló, nada de chocolate (pasmem!), nada de muita coisa.

Essa proteção acabou quando completei 15 anos. Minha mãe me deixou. Faleceu devido a um problema no pulmão. Durante muito tempo, até a doença ela escondeu de mim. Sua morte afetou em mim uma gastrite nervosa severa que me gerou uma série de restrições alimentares. Além disso, passei a conviver com uma família que se alimentava diferente. Fui morar com meu pai.

Minha mãe e meu pai se conheceram em um ônibus de viagem para Minas Gerais. Apesar de mineiros, ambos cozinhavam de modos muito diferentes a mesma comida regional. Além disso, a família de meu pai não passava as dificuldades com as quais eu e minha mãe estávamos acostumadas. Ali, passei a comer "melhor".

Entendia que comia melhor porque comia arroz e feijão todos os dias. A segurança financeira também me deu a possibilidade de estudar e realizar o sonho de ingressar em uma universidade pública. Consegui meu primeiro emprego como jornalista. Com o dinheiro que passei a ganhar, comecei a comer tudo o que antes me era negado. Hambúrguer, pizza, comida mexicana, salgados, refrigerantes. Era libertador saber que podia, enfim, escolher o que comer. Se na infância eu não poderia comprar um lanche no McDonald's, por que ia me privar disso agora? Talvez você concorde com a Camilla de um tempo atrás. Mas vale refletir de que escolhas estamos falando.

É escolha ir ao mercado e só encontrar uma maioria de ultraprocessados cheia de sódio e gordura? É escolha tomar um refrigerante cheio de açúcar? É escolha não ter um restaurante saudável no seu bairro e só um fast food disponível? Que escolha é essa? É aqui que Ecoa entra.

Todos esses questionamentos já tinham me assombrado. Mas foi no contato intenso com o tema alimentação durante o ciclo de reportagens que isso se tornou mais presente. Começou com os documentários "Seaspiracy" e "Muito Além do Peso". O primeiro me mostrou a importância de parar imediatamente o consumo de carne. O segundo me fez reduzir de vez os ultraprocessados. As resenhas que fiz sobre ambos foram o meu primeiro passo para uma mudança.

Depois vieram os textos: Aprenda a substituir a carne nas refeições e Saiba como ler e qual a importância dos rótulos. Hoje tenho uma alimentação recheada de legumes, verduras, frutas, tubérculos e uma nutricionista que me ajuda nesse processo, além claro de estar bem mais atenta aos rótulos dos alimentos que compro no mercado (obrigada, desrotulando!).

Também assinei uma cesta de alimentos orgânicos, totalmente inspirada por Marcos Palmeira, e tenho tentado aproveitar ao máximo cada alimento usando sementes e cascas em outras receitas. Produções como Arroz, feijão e farinha e O arroz orgânico é tudo de bom me levaram para discussões mais profundas como a história por trás do que a gente come e a importância do acesso à terra para que tenhamos uma alimentação saudável.

Camilla Freitas alimentação - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Eu e minha mãe em uma ceia de Natal na casa de minha avó
Imagem: Arquivo pessoal

Caminho hoje para uma vida mais saudável sem, contudo, deixar de entender a importância que o acesso à informação e ao dinheiro tiveram nessa "escolha". Comida no Brasil é caro e tem muita gente passando fome. Não dá para fechar os olhos para isso e achar que se trata apenas de uma escolha pessoal. Comida é política.

Você só pode ter escolhas, se tiver acesso. Mas o primeiro passo é se informar. Hoje sei, por exemplo, que há como comer bem na favela gastando pouco. Então, eu te faço um convite. As reportagens de Ecoa abriram meus olhos para muita coisa. Que tal embarcar nessa e começar por aí? Bom apetite e boa leitura.

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Imagem: Arte/UOL