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Por que o 13 de maio é uma data de protesto e não de comemoração

Mulheres do Ilú Obá de Min na lavagem da escadaria Dom Orione, em 2018 - Oga Mendonça | "13 na 13" | Cortesia Ecoa
Mulheres do Ilú Obá de Min na lavagem da escadaria Dom Orione, em 2018 Imagem: Oga Mendonça | "13 na 13" | Cortesia Ecoa

Diana Carvalho

De Ecoa, em São Paulo

13/05/2020 04h00

"13 de maio, primeiro de abril. Nessa história negro não caiu. E viva Zumbi! E viva Zumbi!"

Entoado por mulheres vestidas de branco, tocando seus tambores e demais instrumentos percussivos, o verso marca a lavagem anual da escadaria Dom Orione, no Bexiga, em São Paulo, todo dia 13 de maio. A água que se espalha pelas ruas do bairro — cuja origem remete, segundo pesquisadores, à presença de um quilombo — é um ato simbólico realizado pelo grupo Ilú Obá De Min na rua que leva a data no nome. Devido à pandemia de Covid-19, a ação será online neste ano.

A iniciativa da fundadora do grupo, Beth Beli, herdada como tradição iniciada em 1989 pelo bloco Oriashé, é uma forma de contestar a ideia de que a sanção da Lei Áurea — que aboliu oficialmente o trabalho escravo no Brasil e marca a data — resolveu todos os males da escravidão. Também é uma forma de questionar o protagonismo da ação e o contexto em que ela se deu. A data, desse modo, se torna um momento de reflexão e de protesto contra desigualdades que persistem.

Para o sociólogo Tulio Custódio, mestre em sociologia pela USP (Universidade de São Paulo) com uma pesquisa acerca de intelectuais negros, o 13 de maio é uma data que, por muitos anos, foi vista de maneira fantasiosa. "Essa narrativa sobre a Lei Áurea, assinada em 1888 pela princesa Isabel, filha de D. Pedro 2º, é só mais uma das tantas narrativas que põem panos quentes na história do Brasil", diz.

Em entrevista a Ecoa, ele explica como a assinatura foi parte de um processo amplo que envolve lideranças negras, fala sobre a insuficiência da lei, explica o que é reparação histórica e destaca a importância do 20 de novembro, Dia da Consciência Negra.

Abolição foi parte de processo político

"No dia 13 de maio foi promulgada a lei Áurea, que dava a abolição da escravatura para todas as pessoas em situação de escravidão jurídica que existia no Brasil desde o século 16. Essa data tende a ser vista de uma maneira fantasiada, como se uma figura, no caso a Princesa Isabel, tivesse assinado um papel e pronto. No entanto, o ponto real é que essa data é só uma parte de um processo político altamente violento e conflituoso que foi a luta pela abolição, na qual vários arranjos, negociações e protestos aconteceram, o que ficou marcado como o movimento abolicionista brasileiro", explica o sociólogo.

Líderes negros foram protagonistas

A abolição da escravatura é resultado de "um processo de resistência e de luta de pessoas negras e também não negras contra a realidade da escravidão no Brasil", pontua Tulio.

Então, é preciso entender que o dia 13 de maio também simboliza a luta de pessoas como José do Patrocínio, Luiz Gama, que foram lideranças fundamentais e estiveram no centro da luta abolicionista.

Não podemos esquecer quem, de fato, esteve à frente desse processo por conta de uma visão fantasiosa de uma princesa salvadora", diz ele.

Por que Lei Áurea foi insuficiente

"A abolição não garantiu nenhum tipo de inclusão, integração social, econômica e cultural", diz Tulio, reforçando a ideia que o bloco Ilú Obá de Min busca transmitir todo 13 de maio. Para ele, "isso mostra como a nossa sociedade se estruturou ao longo dos anos. Como o Brasil, enquanto projeto de nação, incluiu os seus cidadãos".

O sociólogo Tulio Custódio - Divulgação - Divulgação
O sociólogo Tulio Custódio
Imagem: Divulgação

O que é reparação histórica

"Falar sobre esse passado e entender que a abolição não foi suficiente é importante para falar sobre um termo que cada vez mais ganha peso: reparação. Reparação histórica é um conjunto de medidas jurídicas, ou não, que visa corrigir desigualdades estruturais e historicamente construídas", explica o sociólogo.

Essa discussão da abolição como algo insuficiente explica boa parte das questões que têm sido colocadas hoje como pautas de reparação: nisso entram as cotas, por exemplo, e outras ações afirmativas

Como surge o Dia da Consciência Negra

"Desde quando movimentos negros começaram a questionar e criticar a ideia de democracia racial, o processo de abolição e o que isso representava foi questionado. Aí entra a data do 20 de novembro, o Dia da Consciência Negra, que foi ganhando força principalmente nos anos 1980, momento em que a Serra da Barriga se tornou patrimônio da UNESCO e rendeu um movimento de resgate da memória de Zumbi [a data marca a morte do líder], do que foi o Quilombo dos Palmares. Nesse momento se começa a buscar outras raízes, lugares de origens, mitos fundadores que dão mais sentido à resistência negra historicamente construída no Brasil", explica Tulio.

Democracia racial apaga lutas

Não situar o contexto conflituoso e de luta do período invisibiliza personagens e reforça estereótipos, diz o sociólogo. "A narrativa da democracia racial, da conciliação sobre momentos de ruptura histórica, mostrando que os fatos aconteceram de maneira pacífica, acaba com a resistência e a luta que marcam os processos históricos no Brasil, especialmente os processos de luta contra a escravidão e o racismo", diz. "Todas as lutas, desde as primeiras rebeliões, aos banzos, aos primeiros quilombos, cabanagem, todas as revoltas, acabam sendo apagadas e inviabilizadas por conta dessa lógica de que sempre houve uma harmonia."

Segundo o pesquisador, essa ideia faz parecer que "não houve tanta violência" e "que havia uma certa disposição e vontade". "E é aí que a gente entende que todas essas afirmações e desigualdades não são só uma herança da escravidão, mas se tornam uma base mesmo. É como as pessoas hoje pensam, principalmente pessoas de classe média e setores de elite, sobre as empregadas domésticas: 'Ela é da família, ela é muito bem tratada'. Esse tipo de afirmação está na nossa estrutura e na percepção colonizada da nossa sociedade", conclui Tulio.