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Angela Davis, Finlândia e reações à guerra contra a imprensa

A ativista afro-americana Angela Davis esteve, em outubro último, na cidade de São Paulo - Divulgação/Boitempo
A ativista afro-americana Angela Davis esteve, em outubro último, na cidade de São Paulo Imagem: Divulgação/Boitempo

Fred Di Giacomo

Colaboração para Ecoa

31/12/2019 04h00

2019 foi tão intenso que muitas coisas que aconteceram no começo do ano parecem ter rolado décadas atrás. Infelizmente, uma retrospectiva não pode ignorá-las, especialmente quando se referem a um tema tão importante quanto segurança pública.

Em maio, 55 presos foram assassinados em rebeliões em cinco presídios do estado do Amazonas durante conflitos entre facções criminosas. Em janeiro, um acordo entre facções insatisfeitas com a política de segurança pública do governo do estado do Ceará provocou incêndios e atos de terrorismo em Fortaleza e outras 46 cidades cearenses. Já no meio do ano, foram assassinados 57 detentos em novos conflitos entre facções criminosas, desta vez no Pará.

Como combater a criminalidade e pacificar o sistema prisional? Uma das medidas propostas pela Ministro da Segurança Sergio Moro é o Pacote AntiCrime aprovado no Senado, com alguns cortes, agora em dezembro. O Pacote prevê aumento de penas, ampliação dos casos em que o preso responde em regime fechado e redução das possibilidades de anistia, graça ou indulto. Mas tem gente pensando de forma oposta.

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Familiares reagem em frente ao complexo prisional onde detentos foram estrangulados, em Manaus (AM)
Imagem: Bruno Kelly/Reuters

Na Finlândia, por exemplo, existem Prisões Abertas desde 1930. Nelas, atualmente, os presos têm as chaves das celas, trabalham, estudam, pagam aluguel e podem até fazer compras nos mercados locais. "Não existe essa ideia de que estamos trancando pessoas pelo resto de suas vidas", disse Tapio Lappi-Seppälä, coordenador do Instituto de Criminologia da Universidade de Helsinki, para uma reportagem da Global Voices, "porque se esse fosse o caso, deveríamos mesmo investir e garantir que exista a possibilidade de reabilitação", completa.

Hoje, a Finlândia tem uma das menores taxas de encarceramento do mundo, um terço de seus presos vivem em prisões abertas, a taxa de criminalidade não aumentou e os custos com presídios diminuíram. Lá, as sentenças de prisão perpétua, por exemplo, costumam ser convertidas em penas de 10 a 15 anos.

Em julho de 2019, o país nórdico sediou um encontro dos Ministros de Justiça União Europeia, onde teve oportunidade de compartilhar sua política de desencarceramento com o restante dos países europeus.

Todo camburão tem um pouco de navio negreiro

"O Brasil deveria aprender com a experiência norte-americana de que quando a guerra contra as drogas é constantemente evocada como justificativa para que haja um aumento policial racista está servindo apenas como pretexto para matar pessoas negras".

Quem disse isso foi a ativista e filósofa afro-americana Angela Davis que esteve, em outubro deste ano, pela primeira vez pela cidade de São Paulo. Sua recepção foi de rockstar e levou ao "Angelapalooza" (como alguns fãs chamaram sua segunda fala na cidade, que aconteceu na parte externa do Auditório do Ibirapuera) 15 mil entusiastas.

Antes, a intelectual participou do seminário "Democracia em Colapso?", no Sesc Pinheiros, para o qual arrastou uma multidão. Poucas horas depois de abrirem-se as vendas para assistir a primeira fala de Davis, os ingressos se esgotaram. Este ano, a professora teve seu clássico "Angela Davis: Uma Autobiografia" (Editora Boitempo) lançado no Brasil.

Em sua fala no Ibirapuera, Davis lembrou Marielle, saudou as intelectuais negras brasileiras (Sueli Carneiro e Conceição Evaristo, entre elas) e discursou contra o sistema carcerário. A luta pelo abolicionismo penal é uma das grandes bandeiras de Davis.

"A guerra contra as drogas acelerou o processo de encarceramento em massa nos EUA", afirmou ela em seu discurso, "E eu acredito que seja também parcialmente responsável pelos números que se expandem pelo número de encarcerados também no Brasil. Eu gostaria de enfatizar que nos EUA, como resposta aos esforços de se reformar o sistema carcerário, nós afirmamos que nós não queremos a reforma do sistema carcerário. Nós não reivindicamos uma reforma carcerária, nós queremos que o sistema carcerário seja extinto, abolido. A abolição ao sistema carcerário, não à forma do sistema carcerário". A multidão em coro parecia concordar.

Fechem os olhos dos jornais

A política nacional se pauta pela Constituição de 1988 que diz que "nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social".

Em dezembro, no entanto, o prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella (PRB), anunciou um boicote ao jornal "O Globo". Em novembro o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) havia decretado um boicote ao jornal "Folha de S. Paulo". "Um ataque à imprensa tradicional recai de maneira muito mais sensível sobre nós, que produzimos comunicação em locais de maior vulnerabilidade e somos pessoas atravessadas por marcadores sociais, raciais, territoriais, de gênero que também nos reforçam esse lugar", afirmaram os integrantes do InfoTerritório, um dos projetos que venceu o Desafio de Inovação do Google News Initiative na América Latina.

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O InfoTerritório busca democratizar a informação nas periferias de São Paulo
Imagem: Thiago Borges/Periferia em Movimento

"Enquanto jornalistas, recebemos essa notícia com muita alegria. O ano de 2019 foi um momento complicado para a profissão, que tem sido alvo de ataques e caído em situação de falta de credibilidade", afirmaram Pedro Borges, Gisele Brito e Thiago Borges, que responderam coletivamente nossas perguntas e fazem parte um grupo de coletivos de comunicação feito pelas e para as periferias de São Paulo.

"Além de sujeitos localizados às margens do centro, somos também pessoas não normativas: mulheres, negros, LGBTs, periféricos. E para esses grupos, o ano de 2019 foi recheado de notícias trágicas. Por isso, a InfoTerritório nos serve de alento para 2020, para a construção de um possível cotidiano mais democrático para esses grupos."

A missão do InfoTerritório, segundo seus criadores que integram as organizações Alma Preta, Desenrola e Não Me Enrola, Historiorama, Periferia em Movimento e Preto Império, é democratizar a informação, encontrando caminhos para gargalos da comunicação nas periferias, como a melhor distribuição do conteúdo nas próprias periferias de fato relevantes para a população de determinados territórios. Outro ponto é a sustentabilidade financeira dos negócios, que o projeto visa solucionar ao oferecer possibilidade de anúncios georreferenciados.

"É fundamental que as periferias de grandes cidades como São Paulo também sejam enxergadas como polos de conhecimento, ciência e tecnologia. O jornalismo tem como função ser objetivo e olhar para a realidade. E as periferias são um espaço e ambiente muito complexos, que não podem ser resumidas à violência", afirmam os representantes do InfoTerritório.