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Tomas Rosenfeld

REPORTAGEM

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O lobby alemão pelo resgate de bilhões de euros dormentes

Katrin Elsemann - Linkedin/Reprodução
Katrin Elsemann Imagem: Linkedin/Reprodução

06/07/2021 06h00

Para a maioria das pessoas a palavra lobby está associada a interesses escusos, lucros privados e corrupção. O objetivo de aproximar os interesses de grupos específicos à agenda e à prática política não se restringe, contudo, a ganhos bilionários por parte de acionistas em indústrias de responsabilidade questionável. Organizações como a SEND procuram criar pontes entre os empreendedores sociais espalhados pela Alemanha e os políticos sentados em Berlim.

Criada em 2017, a Rede de Empreendedorismo Social Alemã (SEND, no acrônimo original) busca fortalecer os empreendedores. Como coloca Katrin Elsemann, diretora-executiva da organização, as inovações tecnológicas são financiadas de forma ampla no país, enquanto as inovações sociais tendem a ser deixadas de lado. Seu objetivo é colocar os negócios sociais pelo menos em pé de igualdade com os das outras empresas, que recebem muito mais incentivos que seus pares com propósito social.

Katrin conta que a SEND ganhou grande visibilidade com uma iniciativa recente ligada aos dormant assets. Não encontrei tradução para o termo em língua portuguesa - se fosse traduzido literalmente, poderia ser algo como "ativos dormentes" ou, em um paradoxo, "ativos inativos". Por definição, tal tipo de ativo é caracterizado pela situação de desencontro entre o dinheiro e seu dono. Uma conta se torna inativa quando nenhuma transação foi realizada por um período de quinze anos. Podem ser contas com milhares de euros de pessoas falecidas cujos herdeiros não foram encontrados ou pequenas quantias esquecidas por indivíduos ao mudarem de banco ou cidade. Somando tudo, estima-se que o valor dos dormant assets na Alemanha esteja entre os dois e os nove bilhões de euros.

A Alemanha é a única entre o grupo de países mais ricos que não possui regulamentação e procedimentos legais para lidar com os dormant assets. Ao fazer uma busca pelo termo em inglês e percorrendo as primeiras páginas do buscador, encontro referências a dois contextos muito diferentes. O primeiro deles, discute a implementação do modelo inglês, que serve de referência para a SEND, em extensos debates nos principais jornais do país.

Um segundo, faz referência aos bancos suíços e o esforço das vítimas do Holocausto e seus herdeiros para recuperar os valores depositados em instituições financeiras e oficialmente classificados como inativos. Inspirado no modelo implementado na Inglaterra, a SEND propõe que o dinheiro passe a ser usado para financiar fundos voltados ao empreendedorismo social.

Quando Katrin me conta da ideia, estamos sentados em uma pequena sala no edifício do governo alemão às margens do Spree onde situa-se a sede da SEND. Da janela, vejo uma pequena faixa de terra coberta por árvores entre um corredor estreito de muros. O Parlamento das Árvores, como o lugar é conhecido, percorre o trajeto do Muro que dividiu a cidade por quase trinta anos e é um memorial às suas vítimas. Do outro lado do canal, é possível ver o prédio do Reichstag, o parlamento alemão, e sua cúpula transparente desenhada pelo arquiteto inglês Norman Foster. Fotos do final da Segunda Guerra mostram a área em que estamos totalmente destruída e a sede do legislativo como um prédio solitário em meio aos escombros. Em uma visita guiada pelo edifício, é possível ver os grafites em cirílico feitos pelos soldados soviéticos depois da conquista da cidade. Os mais obscenos foram removidos, mas ainda se leem inscrições com os nomes dos soldados, suas origens e trajetórias.

Berlim é essa sobreposição complexa de memórias e esquecimentos, um palimpsesto urbano, destruída, reconstruída, esquecida e lembrada. O fato de que a primeira grande pauta da SEND tenha sido os domant assets me parece paradigmática tanto da condição de Berlim como do setor da inovação social.

Esses recursos estão parados. Descrevem a história de um pai que não contou da existência de uma conta para os filhos ou de alguém que não se lembra mais de ter deixado quarenta e dois euros na conta corrente do banco onde recebeu seu primeiro salário. Talvez contem ainda histórias mais trágicas. De qualquer forma, acumulam décadas de poeira bancária.

Há beleza e justiça em colocar os recursos novamente em circulação, deixar que sejam devolvidos aos seus proprietários originais ou nutram novas ideias e negócios. O melhor da inovação social, diz Katrin ao final da entrevista, está nesse olhar para o que não está sendo usado da melhor forma possível. Não na criação de estruturas e ideias mirabolantes, mas na reinvenção da potência.