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Marina Mathey

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Isso não é apenas uma declaração de amor!

Digg Franco e Marina Mathey - Digg Franco/ Acervo pessoal
Digg Franco e Marina Mathey Imagem: Digg Franco/ Acervo pessoal

25/08/2021 06h00

Difícil falar sobre amor em meio ao apocalipse sociopolítico, ecológico e sanitário que vivemos, mas não posso refutar a esse ímpeto se é ele um dos responsáveis por eu permanecer de pé e lutando dia após dia apesar de tudo. Ontem comemorei um ano de namoro pela primeira vez em vinte e oito anos de vida, mas esse texto não é apenas uma declaração de amor, mas um firmamento, a denotação de que experimentar a minha grandeza compartilhada tem transformado meu mundo por completo.

Vivi poucos relacionamentos duradouros na minha vida. Algumas amizades que eu pintei de amor na adolescência por questão de sobrevivência, performando uma masculinidade cisgênera e heterossexual. Um único namoro mais longo, com um homem cis, por volta dos meus vinte anos, em que aprendi muitas coisas, inclusive como as pessoas mentem. Iniciei minha transição de gênero aos vinte e três, e aí tudo se transformou.

Antes da transição de gênero, apesar de não estabelecer muitas relações duradouras, posso garantir que minha sexualidade permanecia constantemente para jogo. Parceiros sexuais não eram uma questão, não me faltavam — porém, o respeito e a troca verdadeira mandavam lembranças de longe. Numa performance cisgênera e masculina de um homem gay, branco e de classe média, preterimento não era algo que me atingia, pelo contrário, era muito simples e rápido conseguir alguém para transar e sanar meus tesões imediatos.

Com a transição tudo se transformou e, de início, passei oito meses sem transar com ninguém, um pouco por não estar ainda confortável com o meu corpo — que passava por um processo profundo de re-percebimento — e bastante pelo desafeto recebido por parte das outras pessoas, item padrão do "kit-travesty".

Re-entender meu corpo, meus prazeres, como eu gostaria de ser vista e até mesmo como eu era vista independente da minha vontade eram questões ainda muito cruas em mim. Era uma travesti lida como ?viadinho? que aprendeu a ter tesão por gays cisgêneros, querendo ser desejada por eles agora como a mulher que eu era. Confuso? Tive que reformular todo o direcionamento dos meus tesões, meus afetos, meu comportamento social e, principalmente, entender a nova cartilha de papel de gênero que chegava para mim, de mulher, de travesti, que retirava grande parte dos meus privilégios anteriores — enquanto performava masculinidade — e me colocava em uma condição no jogo das relações interpessoais bastante diferente.

Pelejei nesse deserto. Me sentia estranha, inadequada, feia — nada que já não sentisse antes por não viver a minha verdadeira identidade, mas agora com o "plus" do reconhecimento social da minha verdade e as violências que chegam de graça. Foram meses e anos de elaboração, tentativa e erro para entender passo a passo como me livrar dessa armadura, dessa casca, dessa fantasia gay que eu vestira antes e que já não me servia mais. Era apenas mais uma performance de sobrevivência — assim como quando eu namorava minhas amigas na adolescência — e agora finalmente estava aprendendo a vestir minha própria roupa, andar com minhas próprias pernas.

Pois bem, acabado o carnaval, sem fantasias e caminhando por esse processo de re-conhecimento, porrada atrás de porrada, com uma desilusão após a outra, fui entendendo como o mundo real funcionava e reagia a mim. Ao passo que ia desacreditando no conto de fadas, no romance cis-heteronormativo, na falácia hereditário-capitalista que me contaram desde criança, eu ia firmando mais e mais meus pés no chão e entendendo meu tamanho, minha grandiosidade.

Ser travesti no Brasil é saber jogar o jogo, correr constantemente o risco de perder, mas aprender que a gente precisa ser mais esperta do que quem o inventou. "Não basta ser bonita, tem que ser ligeira!" E assim fui desenvolvendo meus limites, desenhando-os para que não mais me deixasse derrubar pelas vontades que os outros projetavam sobre o meu corpo.

Ontem fez um ano que comecei a namorar com o Rodrigo. Já fazia cerca de dois anos que meus afetos se mantinham direcionados para pessoas trans, porém não tinha ainda vivido uma relação de parceria tão poderosa como a nossa. Falei um pouco sobre relações transcentradas no meu texto "Talvez nossos corpos se encaixem melhor: Afetos Transcentrados", e hoje quero falar sobre como todo esse passado que contei vem se tornando memória, dando espaço para outras experiências de vida, essas que têm muito mais a ver com a dignidade, o carinho e o valor que merecemos. Acredito que ter delimitado para mim os meus próprios limites foi crucial para poder viver essa relação, pois não mais me permiti fazer ou acatar a coisas que não me fizessem bem. Não tomei mais decisões para agradar ao outro, a não ser que me agradasse igualmente.

Eu e o Digg já éramos amigos, já nos conhecíamos há um tempo e sabíamos bastante um sobre o outro. Eu nunca me interessei por pessoas que aparentam perfeição, que escondem suas sombras, seus erros, isso para mim é a força motriz das pessoas mentirosas. Gosto mesmo é daqueles que têm coragem de serem criticados, que se permitem revelar as incertezas e se remontam, se reconstroem constantemente a partir de suas cagadas. E não é que o bichinho cumpriu os requisitos?

Construímos uma relação até aqui de muita escuta, muita parceria, onde os deslizes ou feridas que possam acontecer no meio do caminho são motivos de reformulação, de crescimento, não de rompimento imediato, de fuga, de negação. Vamos nos dando suporte para voar, cada um no seu caminho, mas sempre nesse amparo mútuo, bilateral.

Não vou me ater ao eterno, a defini-lo como "homem da minha vida" porque, como já disse, os contos de fadas não me fazem mais chorar, mas encontrei um grande amigo, um parceiro a quem posso confiar minhas vulnerabilidades, minhas fraquezas sabendo que, mesmo ele não sabendo lidar com as minhas lágrimas, ele não tem a ousadia de me impedir de derramá-las.

Choramos, talvez, tudo aquilo que nos foi proibido para que não perdêssemos o jogo. Choramos as desilusões que passamos a compreender melhor a partir do momento que passamos a nos relacionar, que enxergamos que o nosso passado foi mais violento até mesmo do que já sabíamos. É muito louco como criamos armaduras e proteções para não percebermos até mesmo o tamanho de nossos traumas e dores.

Podermos elaborar essas violências e compartilhar as nossas vivências, tão parecidas e ao mesmo tempo tão distintas, tem sido uma forma de nos munir também. Esse entendimento não só nos faz mais íntimos, mas nos revela mais facetas da sociedade em que vivemos, ou seja, nos dá mais ferramentas para seguir lutando pelas nossas vidas, nossos direitos e, agora, prevendo obstáculos que antes desconhecíamos.

Por mais que possamos parecer agradáveis aos olhos da normatividade: brancos, "heterossexuais" — entre aspas porque nossa relação é heterossexual, mas não nos identificamos assim — existe um grande abismo que separa a nossa experiência da de um casal cis, branco, heteronormativo. E isso, que poderia ser motivo de discorrer milhares de processos violentos — construtores desse abismo — na verdade tem se mostrado nossa maior sorte, porque é exatamente essa diferença de vivências que não nos permite reproduzir a lógica normativa que nos aniquila diariamente. Nossa identidade é nossa nova armadura, agora não mais para esconder, mas para se proteger da hipocrisia que corrói as estruturas da nossa sociedade.

Ainda é só o começo. Não do jogo — que, aliás, entre nós não existe —, mas dessa caminhada juntos, desse crescimento. E uma coisa posso dizer com muita propriedade: se separados já éramos grandes, juntos o babado é forte meixmo! Porque travesti não dorme, cochila, e acompanhada desse dragão... Fico só prevendo os próximos passos... Enfim, melhor eu terminar por aqui! Vocês vão descobrir no caminho o resultado disso tudo...