Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Minha mãe foi meu Machado de Assis

"Papai, conta outra historinha?", repete meu filho Benjamin, 5 anos e meio, em seu mantra diário. No começo, a hora da "historinha" era antes de dormir, mas abri uma exceção para as viagens longas de transporte público que fazíamos diariamente, antes da pandemia trancar todo mundo em casa, e a coisa tornou-se sua diversão predileta. Benjamin é capaz de trocar as horas restritas em que pode assistir desenhos animados por uma historinha. Prefere as aventuras em que ele e seus primos se tornam super-heróis mirins, às voltas com monstros brasileiros, do que os contos morais em que Zé Feinho e Zé Bonitinho revivem acontecimentos do dia protagonizados por ele.
Neil Gaiman — autor de "Sandman" e "American Gods" — diz que o melhor elogio para um contador de histórias é contá-las a uma criança que não para de perguntar "E, agora, o que acontece?" As crianças pequenas são extremamente sinceras e não se preocupam muito em fingir interesse por educação. Quando percebi que meu filho estava aguardando avidamente por aquele período de tempo - depois que eu lhe dava janta, escovava seus dentes e botava-o na cama - percebi que eu também aguardava aquele ritual com um prazer que não sentia em outras atividades diárias e mecânicas de cuidado. Escovar os "dentes de leite" de um garotinho agitado é muito importante, mas não é das tarefas mais recompensadoras. No entanto, eu me pegava ao longo do dia pensando detalhes que poderiam tornar a história noturna mais atraente para Benjamin, mais conectada ao seu cotidiano, aos seus medos e às suas curiosidades.
Isso conectou-me ao momento em que me apaixonei pela contação de causos ou, como se diz hoje, pelo "storytelling". Percebi, com alegria, que o marco inicial desse processo não foi terminar a primeira leitura da minha vida, nem o encontro com "A Ilha do Tesouro" que me fez amar os livros profundamente. Foi, sim, a hora de dormir, lá na minha infância caipira, quando minha mãe, uma das melhores contadoras de histórias infantis que conheci, inventava narrativas melhores que as dos livrinhos que tínhamos em casa, melhores até que dos desenhos que passavam na TV.
Eram narrativas que misturavam mitos e contos de fada com pessoas e lugares conhecidos e até uma princesa feminista que não queria ser salva pelo príncipe, mas queria, sim, que ele a ensinasse a lutar para derrotar o vilão que viera numa nave espacial e a obrigava a ficar escondida no alto de uma torre. Foi ouvindo as histórias de minha mãe (e de alguns outros contadores de causos do interior) que nasceu em mim um escritor e um jornalista. Antes de conhecer os grandes autores como Machado de Assis, Ana Maria Gonçalves e García Marquéz houve essa tradição oral que se infiltrou em meu coração.
É na minha mãe que penso quando invento as histórias que hipnotizam e divertem meu filho diariamente. É com suas narrativas em Penápolis - em noites quentes, com as janelas de madeira abertas, onde eu podia ver a bananeira do vizinho se agitando contra o vento e os morcegos voando atrás de jabuticabas - que me ligo, em uma viagem no tempo. A viagem no tempo começa na selva de pedra, onde a vida me levou a educar Benjamin, retorna para o centro do Brasil, em Penápolis, e chega aos primeiros homens contando suas histórias em volta de fogueiras.
Histórias que procuravam explicar o mundo, educar, entreter ou simplesmente afastar o medo do escuro e do desconhecido, temperando com sentido e sabor o caos que nos rodeia.
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