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#DaQuebradaProMundo

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Por que a pontualidade alemã é coisa do passado?

6.mai.2015 - Passageiros andam por plataforma de trem lotada na cidade de Frankfurt, na Alemanha, devido a greve dos ferroviários. Os trabalhadores reivindicam mudanças na política de contenção de despesas do administrador do sistema ferroviário do país, Deutsche Bahn. O plano inclui o corte de horas de trabalho e salários dos funcionários - Boris Roessler/AFP
6.mai.2015 - Passageiros andam por plataforma de trem lotada na cidade de Frankfurt, na Alemanha, devido a greve dos ferroviários. Os trabalhadores reivindicam mudanças na política de contenção de despesas do administrador do sistema ferroviário do país, Deutsche Bahn. O plano inclui o corte de horas de trabalho e salários dos funcionários Imagem: Boris Roessler/AFP

02/07/2021 06h00

A pontualidade tem grande relevância para quem vive na Alemanha. Fazer alguém esperar, mesmo que seja "só cinco minutos", pode mesmo acabar com uma amizade. Entretanto, atualmente a tão famosa e apreciada pontualidade alemã está sendo transformada. Na coluna #DaQuebradaProMundo dessa sexta-feira eu gostaria de conversar sobre a transformação da Deutsche Bahn, e como isso afeta a vida de uma nação inteira.

Trabalhadores do mundo, uni-vos

Deusche Bahn, em alemão significa "a ferrovia", e para fazer uma ponte entre a cultura de favela e a cultura alemã não existiria um ponto mais preciso: o meio de transporte do proletariado.

Como eu cresci em Diadema - uma cidade vizinha de São Paulo - só fui conhecer os trens depois de adolescente, cruzando a cidade para chegar ao trabalho. Mesmo assim, carrego comigo a forte lembrança da primeira viagem da vida, essa que embarquei com os fones de ouvido ao som de "O trem" do RZO. https://www.youtube.com/watch?v=OKim_CH8D0Y

Anos se passaram, e o moleque que cruzou a cidade para limpar privadas ganhou uma bolsa de estudos e foi parar na terra da pontualidade, a Alemanha. Todavia, em pouco menos de dois anos já se é possível reparar que, na verdade, a terra da pontualidade já não é mais tão pontual assim. Especificamente nos trens que conectam os trabalhadores do mundo.

Para que vocês possam ter uma noção, os trens se atrasam tanto, que matérias como essa com o título em alemão: "Warum die Bahn so oft zu spät kommt" (por que o trem se atrasa com tanta frequência) se tornaram uma piada interna na cultura alemã. Mas por que os trens alemães hoje são motivo de piada?

Os motivos do atraso

Em entrevista para a rádio alemã Nova, a jornalista Nadine Ahr compartilhou os resultados de uma matéria investigativa que ela fez sobre a empresa Deutsche Bahn, e compartilhou as seguintes conclusões:

A definição de atraso é deturpada pela empresa

Para a "Deutsche Bahn", por definição, não pode ser considerado "um atraso", se for uma diferença de menos de seis minutos. Isto significa que se o trem chegar às 16h45 ao invés das 16h40, conforme programado, a Deutsche Bahn considera isto como "pontual".

Infraestrutura

Em 2000, existiam 36.000 quilômetros de linhas ferroviárias na Alemanha, hoje são 33.000 quilômetros. Assim, com o tráfego permanecendo o mesmo ou mesmo aumentando, há menos quilômetros de trilhos disponíveis.

Gente é para ser gentil

Ao ouvir a entrevista da jornalista para a rádio alemã o que mais me chamou a atenção foram os dois últimos motivos de atraso levantados pela jornalista, que definem muito bem um conflito que vivemos atualmente.

1 - O enfoque na produtividade e no lucro, o esquecimento da instabilidade humana.
Os trens se atrasam constantemente devido aos cronogramas que foram pensados sem considerar tempo de embarque de pessoas de idade, deficientes físicos ou até mesmo a superlotação do trem, que faz com que ele tenha que parar mais tempo na estação, e gera um efeito dominó.

2 - O enfoque no bem-estar e nos direitos do trabalhador, o esvaecimento da pontualidade.

Os maquinistas de trem devem fazer um intervalo de 30 minutos após seis horas de corrida. Se o trem estiver atrasado (por qualquer razão), o maquinista nem sempre chega à estação onde um colega está esperando para aliviá-lo durante as seis horas. Mesmo assim, o motorista precisa fazer a pausa, não importa onde. Assim, na pior das hipóteses, o maquinista, o trem e os passageiros terão que sentar-se em qualquer estação por 30 minutos.

Ao ouvir essa a entrevista no rádio fui atingido por algumas indagações. Por que nós precisamos de pontualidade? Ao refletir a esfera pessoal, entendo que a pontualidade seja conectada à questões de respeito e empatia. Mas e na esfera profissional? Por que é necessário que estejamos sempre produzindo, produzindo e produzindo e que a gente desconsidere os que precisam de mais tempo?

Os dois principais motivos de atraso dos trens alemães são também um reflexo do nosso mundo moderno e os seus dilemas. Exatamente da ganancia, do "mais-querer" de clientes, de viagens e de produções é que nasce o gargalo, o atraso da nossa sociedade. O motivo da piada alemã, é também o motivo de atenção dentro de um sistema que aos poucos vem colapsando. Um sistema que precisa da nossa singularidade e bem-estar, mas não quer considerar nossa singularidade e bem-estar na hora de fechar as contas.

Será que chegaremos em um tempo onde a pausa, o humano, o interior, será tão valorizado quanto uma produção "just-in-time" sem fim? Uma pontualidade que desconsidera os fatores humanos e poéticos da nossa vida, é uma pontualidade não sustentável. É uma pontualidade que precisa ser repensada, e por isso, é coisa do passado.