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#DaQuebradaProMundo

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Wohltat e o aprendizado de um marreteiro

Arquivo Pessoal
Imagem: Arquivo Pessoal

26/03/2021 06h00

Durante a minha adolescência fiz uma das coisas que mais me orgulho na minha vida: eu fui marreteiro. Nessa coluna #DaQuebradaProMundo gostaria de apresentar uma palavra alemã, Wohltat, e como uma ponte das culturas germânica e de favela podem anestesiar um pouco esses tempos de cólera.

A palavra alemã Wohltat tem diversos significados e aplicações. Um deles é o seguinte: "o bem que se faz sem esperar nada em troca". Entretanto para que eu possa te explicar o peso dessa palavra preciso primeiro te explicar o que é um marreteiro. Parafraseando um trecho do meu primeiro romance "Reservado": "O marreteiro é um artista-comerciante. Diferentemente do camelô, que comercializa as mercadorias somente nas ruas e calçadas, o marreteiro faz isso também nos vagões da metrópole. Produto original do Brasil, o marreteiro nasceu para driblar a dificuldade e entreter os passageiros na venda de qualquer produto. Não é apenas uma venda, é um show. Elas e eles desfilam por entre os bancos e passageiros e vão gritando discursos bem-humorados e atrativos para o cliente em relação ao próprio produto. Um marreteiro raiz é capaz até de vender enxugador de gelo no deserto. Frases feito essas são bordões entre as propagandas: "A porta fechou e o shopping abriu", "Chegou delícia, chegou qualidade", "Não é vencido, não é roubado é apenas caminhão tombado", "Mais alguém, alguém mais?", "Testa na hora" "Essa mercadoria aqui é diretamente de Moscou. Se Moscou os guarda leva!", "Tô vendendo pra pagar as parcelas do Escort. Mas pessoal, Escort não é o carro não, é o Escort da água, o Escort da luz e do aluguel, então ajuda eu pessoal". Podendo ser uma pessoa de qualquer idade, gênero ou etnia, o que une a classe trabalhadora é a origem. A grande maioria dos marreteiros e marreteiras é de periferia e tem um bom motivo para desbravar esse universo: o desemprego."

No meu caso não foi o desemprego, mas sim a baixa remuneração. Na época em que comecei a marretar estava trabalhando como aprendiz em um hotel na rua Oscar Freire, e o meu vale alimentação era maior do que meu salário. Daí que a arte da pobreza se juntou com a arte do hip hop. Um dia voltando do trabalho no hotel me encontrei com um dos nomes mais importantes do hip hop brasileiro, Marcello Gugu, nas escadas do metrô Ana Rosa. Em uma conversa descontraída pedi uma oportunidade de vender os CDs do MC e daquele dia em diante minha vida foi revolucionada pela arte da "marreta".

O que era para ser uma fonte de renda extra nos ensinou cidadania na prática. No começo "marretar" consistia em colar nas batalhas de MCs para vender os CDs em rodas de rima, entre nós. (Dimilgrau, Pixote, Nouve e etc. Esse era nosso bonde). Porém a cena do hip hop estava em evolução e isso impulsionou nossas vendas e nos transformou em um "sindicado dos marretas". Nos organizamos em um coletivo que se ajudava e protegia contra as injustiças das ruas. A gente tinha um grupo na época onde mandávamos os melhores eventos culturais da semana, os mais acessíveis e com mais chance de irmos, vendermos e voltarmos todos juntos.

E quando digo que o "marretar" nos fez cidadãos não estou exagerando. Só acessamos a cidade de fato porque aprendemos a hackeá-la socialmente. Em todos esses eventos só chegávamos usando o vale transporte do trampo, fazendo baldeação. Foi através do trabalho - a única ponte possível entre favelados e os eventos da Vila Madalena, Mariana e Pinheiros - que ocupamos diversos espaços da sociedade paulistana. Em alguns cantos da cidade tínhamos que provar inocência pelo crime de ser quem somos. Sentimos a hostilidade de ser um jovem negro em uma cidade racista antes mesmo de conseguir entender que éramos um. E mesmo assim a gente prosperou, cada um de nós foi responsável por ter vendido no mínimo uns cinco mil CDs cada. Verdadeiros traficantes da arte urbana.

Nas ruas que conheci Dimilgrau, as minas do Rap Plus Size, o Faíska e o Nouve, foram dessas ruas que colhi sabedoria de vida com o meu irmão, Ras MC. Em uma espécie de justiça poética, o ensinamento veio no mesmo local que me garantiu o emprego como marreteiro, no metro Ana Rosa. Depois de um dia abençoado de trabalho onde havíamos vendido muitos CDs, dois moleques pintados de prata vieram pedir dinheiro para nós. Eu reclamei, disse com um tom de arrogância que "não trabalho para sustentar vagabundo", e foi aí que o Ras me surpreendeu com um Wohltat da zona leste de São Paulo. Ele me disse:

"Irmão, quando alguém te pede ajuda não quer dizer que essa pessoa é fraca. Mas sim que ela é tão forte que reconheceu a própria fraqueza. Agradeça ao Deus que te deu a força e a riqueza para compartilhar. O pedido do outro é também uma oportunidade sua de ajudar. E o que você vai fazer com isso?"

Quando eu penso nesse caos que estamos vivendo nos dias de hoje eu penso nas sábias palavras de Ras MC, penso em Wohltat. A palavra alemã do "bem que se faz sem esperar nada em troca", lembra? Ou como eu traduziria para nossa cultura, "fazer o bem sem olhar a quem". O que o meu irmão Renato - um moleque pobre e de favela que nem eu, que não tinha muito, mas partilhou o pouco que tinha - chamou de Deus, você pode chamar de Deusa, de energia, de força, do que quiser. Eu só peço que você chame. Que ajude o outro. Não se esqueça. Que essa palavra seja uma lembrança, um olhar vindo de fora para um dos conceitos que carregamos dentro do peito. Para que a gente não esqueça que no meio do caos ainda somos Wohltat.