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Como VW passou a ser investigada por trabalho escravo e tortura na Amazônia

Volkswagen foi convocada pelo Ministério Público do Trabalho para tratar de denúncia de traballho escravo em fazenda no Pará que pertenceu à empresa nas décadas de 1970 e 1980 - Divulgação
Volkswagen foi convocada pelo Ministério Público do Trabalho para tratar de denúncia de traballho escravo em fazenda no Pará que pertenceu à empresa nas décadas de 1970 e 1980
Imagem: Divulgação

Alessandro Reis

DO UOL, em São Paulo (SP)

01/06/2022 04h00

A Volkswagen foi convocada pelo MPT (Ministério Público do Trabalho) a participar de audiência no próximo dia 14, em Brasília (DF), para tratar de acusações de tortura e trabalho escravo na fazenda que a montadora manteve no sul do Pará entre 1974 e 1986.

As investigações do órgão tiveram início em 2019, com base em documentos e testemunhos reunidos pelo padre Ricardo Rezende Figueira, coordenador do Grupo de Pesquisa de Trabalho Escravo Contemporâneo da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro). Contudo, as primeiras denúncias dele contra a montadora foram feitas em 1983.

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Na época, o Brasil ainda vivia sob ditadura e a Volkswagen negou envolvimento nos crimes. Por meio de nota, hoje a empresa afirma que "não comentará o assunto até que tenha clareza sobre todas as alegações". A VW também diz que "reforça seu compromisso de contribuir com as investigações envolvendo direitos humanos de forma muito séria".

A convocação aconteceu após a imprensa alemã noticiar que a Volks atualmente é investigada pelo MPT. Reportagens sobre o tema foram publicadas no último domingo pelo jornal Sueddeutsche Zeitung e pela emissora pública NDR.

UOL Carros conversou com o padre e professor responsável por tornar o caso público há quase 40 anos e que subsidiou a investigação do MPT. Ele conta ter mais de 600 páginas de documentos sobre as alegadas condições de trabalho na Fazenda Vale do Rio Cristalino, que era localizada em Santana do Araguaia (PA) e pertencia a uma subsidiária da Volkswagen.

Esses documentos incluem o relato de aproximadamente 15 pessoas que teriam trabalhado na "Fazenda Volkswagen" em condições análogas à escravidão e ajudaram a compor o conteúdo do livro "A Escravidão na Amazônia" (Editora Mauad) - lançado em dezembro passado com autoria de Ricardo Rezende Figueira, Adonia Antunes Prado e Rafael Franca Palmeira.

A obra não aborda apenas as acusações envolvendo a VW, como também outras empresas que na mesma época instalaram empreendimentos na Amazônia com subsídio do governo militar por meio da Sudam (Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia) e do Basa (Banco da Amazônia) - seguindo a estratégia de ocupar e trazer "desenvolvimento" à região.

Relatos de tortura, estupros e assassinatos

Comissão de deputados visitou fazenda da Volks em 1983; montadora negou acusações na época - Clovis Cranchi/Estadão Conteúdo - Clovis Cranchi/Estadão Conteúdo
Comissão de deputados conversa com trabalhadores da fazenda em 1983; VW negou acusações na época
Imagem: Clovis Cranchi/Estadão Conteúdo

O padre Figueira diz que, já no início da década de 1980, ele recebia denúncias de atividades criminosas no empreendimento da Volks, como impedimento de saída da fazenda por meio de vigilância armada, trabalho sem remuneração, contração de dívidas impagáveis pelos trabalhadores para custear moradia e alimentação, acomodações insalubres, tortura e até espancamentos, estupros e assassinatos.

"Recebi a primeira denúncia contra a Volkswagen em 1982. Novas acusações surgiram no ano seguinte, quando três trabalhadores conseguiram escapar da fazenda e relataram para mim as coisas horríveis que lá aconteciam", afirma o professor e religioso, que naquele tempo era coordenador da Comissão Pastoral da Terra da CNBB (Confederação Nacional dos Bispos) na região.

Naquele tempo, a fabricante de veículos já era acusada pela imprensa internacional de promover desmatamento irregular na fazenda de 139 mil hectares, sem as devidas autorizações de órgãos ambientais, para a criação de gado - na ocasião, a VW negou todas as acusações.

Segundo o padre, trabalhadores escravizados eram recrutados justamente para o trabalho de derrubada da mata nativa.

"Esses três jovens que fugiram da 'Fazenda Volkswagen' ficaram apenas um mês no local e logo na primeira noite já começaram a se apavorar. Eles presenciaram fiscais armados espancando um 'peão' que tentou fugir. Conforme disseram, outro trabalhador foi amarrado nu em uma árvore no meio da floresta e também sofreu agressões. A mulher dessa pessoa teria sido estuprada", afirmou.

Rezende Figueira também ouviu do trio que havia assassinatos no local e os corpos eram jogados no Rio Cristalino, dentro da propriedade.

VW recebeu comissão em fazenda no Pará

Abílio Dias, conhecido como Abilão, era um dos 'gatos', empreiteiros que fiscalizavam funcionários na fazenda - Clovis Cranchi/Estadão Conteúdo - Clovis Cranchi/Estadão Conteúdo
Abílio Dias, conhecido como Abilão, era um dos 'gatos', empreiteiros que fiscalizavam funcionários na fazenda
Imagem: Clovis Cranchi/Estadão Conteúdo

O padre conta que em julho de 1983 levou uma dessas testemunhas para Brasília (DF), onde convocou uma coletiva de imprensa e apresentou as denúncias. Ele recorda que no Brasil houve pouca repercussão, mas diz que o caso começou a reverberar fora do País.

"A história chegou aos funcionários da Volkswagen em São Bernardo do Campo [SP]. Foi então que a empresa convidou Expedito Soares, ex-operário da fábrica no ABC e então deputado estadual pelo PT, para visitar a fazenda no Pará e constatar se as denúncias eram verdadeiras. Ele aceitou, sob a condição de ser acompanhado por dois parlamentares de outros partidos, mais sindicalistas, o que acabou acontecendo", relembrou.

Quando o grupo chegou à fazenda, na companhia da direção da VW, os parlamentares solicitaram a presença de Figueira, que estava a cerca de 80 km dali. Um carro da companhia foi buscá-lo, conta o religioso. No trajeto, encontraram um "gato", empreiteiro da fazenda responsável por "fiscalizar" os trabalhadores.

"Eu não presenciei a cena, porém me contaram que esse 'gato' estava com um fugitivo amarrado na caçamba de uma picape", contou o religioso.

Mais tarde, quando chegou ao local, o ex-coordenador da CNBB diz que não havia funcionários, exceto um que parecia doente e dizia ter sido impedido de sair de lá porque estava devendo dinheiro à administração da fazenda.

"Acredito que os trabalhadores foram escondidos dentro da mata. A fazenda tinha até clube e um hotel de luxo, tudo bancado com a ajuda de dinheiro público. Os 'peões' ficavam em casas de madeira", explicou o padre.

A visita foi acompanhada pelo jornal "Estadão", que publicou reportagem a respeito em julho de 1983, na qual a VW voltava a negar envolvimento com a prática de trabalho escravo.

"Na época, o governo do Pará chegou a abrir inquérito policial, mas a investigação não deu em nada. A Volkswagen já admitiu uso de trabalhos forçados na Alemanha durante a Segunda Guerra e também reconheceu desrespeito aos direitos humanos a funcionários da fábrica de São Bernardo do Campo na ditadura. Por que não reconhecer o trabalho escravo na fazenda do Pará? A matriz da empresa sabia dos fatos que lá aconteciam", reclamou Figueira.

O padre espera que a VW indenize os sobreviventes ou seus descendentes e também o Brasil.

A VW vendeu a fazenda em 1986, mesmo ano no qual a Justiça do Trabalho reconheceu o vínculo empregatício dos três trabalhadores que escaparam da Fazenda Vale do Rio Cristalino.

Volkswagen indenizou funcionários brasileiros em 2020

Fábrica da Volkswagen na Rodovia Anchieta, em São Bernardo do Campo, no ABC Paulista - Divulgação - Divulgação
Fábrica da Volkswagen na Rodovia Anchieta, em São Bernardo do Campo, no ABC Paulista
Imagem: Divulgação

A Volkswagen do Brasil assinou em setembro de 2020 um TAC (Compromisso de Ajustamento de Conduta) com o Ministério Público Federal, o Ministério Público do Estado de São Paulo e a Procuradoria do Trabalho.

Por meio do acordo, a empresa destinou R$ 16,8 milhões à Associação dos Trabalhadores da Volkswagen. A maior parte da verba foi direcionada a ex-funcionários que manifestaram terem sofrido violações de direitos humanos durante a ditadura militar - ou seus sucessores legais.

O TAC totalizou R$ 36 milhões em iniciativas para promover "o esclarecimento da verdade sobre as violações dos direitos humanos naquela época", disse a Volks. Devido ao acordo, inquéritos sobre os abusos foram arquivados.

"Lamentamos as violações que ocorreram no passado. Para a Volkswagen AG, é importante lidar com responsabilidade com esse capítulo negativo da história do Brasil e promover a transparência", disse na época Hiltrud Werner, então membro do Conselho de Administração da Volkswagen AG por Integridade e Assuntos Jurídicos.

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