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Escola Veados Comunistas invoca Karl Marx em mistura de samba e política

Bianca Castro e Renato Madureira com a bandeira da escola - Divulgação
Bianca Castro e Renato Madureira com a bandeira da escola Imagem: Divulgação

Valmir Moratelli

Colaboração para o UOL, no Rio

05/12/2021 04h00

Dizem os entusiastas do Carnaval que fevereiro é a época do ano propícia para a transgressão, quando se pode ser o que bem quiser, sem medo de julgamentos. Partindo dessa premissa, surgiu a Veados Comunistas, a mais jovem escola de samba do país.

"Meu sonho era ter um projeto que misturasse samba e política. E pensei no xingamento que mais lançam para gente na internet. Daí veio o nome Veados Comunistas. Meu amigo na hora falou: 'Vamos fundar isso!'. Foi assim, sem pretensão nenhuma, que a escola surgiu", conta o jornalista Fernando Saol, de 34 anos, sobre o papo que teve com o amigo e cofundador Ivan Araújo. Ele reforça que a data de fundação da escola foi em 1º de maio, feriado mundialmente emblemático para a classe trabalhadora.

No dia 26 de novembro, o pavilhão vermelho e amarelo, cujo símbolo é formado por foice e martelo entrecruzados, girou pela primeira vez em um ensaio de quadra, na final de disputas de samba da Colibri, escola de Mesquita, na Baixada Fluminense. Quem o carrega é a porta-bandeira trans Bianca Ermida, de 26 anos. "A Veados dá um pontapé inicial para que outras porta-bandeiras trans tenham oportunidade de mostrar seu trabalho e dizer que somos iguais", diz ela, que faz dupla com o mestre-sala cisgênero Renato Madureira.

Bianca Ermida é a porta-bandeiras - Divulgação - Divulgação
Bianca Ermida é a porta-bandeiras
Imagem: Divulgação

Abre-alas aos arrependidos

Originária de uma escola de samba virtual, competição onde aficionados por Carnaval se reúnem pela internet para desenhar alegorias e fantasias, a Veados tem um longo caminho na luta para "revolucionar" o evento. Já deu entrada no pedido de alvará da prefeitura do Rio, confeccionou camisas com o emblema do pavilhão e faz rifas na internet para angariar fundos a tempo de fazer as fantasias. "Todo mundo que vem falar comigo prometo o cargo de musa. Daqui a pouco teremos mais musa que alas!", brinca Fernando Saol.

Sem seguir à risca a expropriação privada, a Veados Comunistas pegou emprestada a quadra da coirmã Acadêmicos do Peixe para realizar seus ensaios. É no bairro de Anchieta, zona norte do Rio, que a jovem escola esquenta os tamborins. "Somos ecléticos. Acolhemos os enrustidos e até os arrependidos", diz Saol. "Só queremos os negacionistas longe", continua.

A previsão é que o desfile seja no Sábado das Campeãs, na noite de 5 de março de 2022, na avenida Intendente Magalhães, subúrbio do Rio, sonhando em alcançar um dia a elite do samba.

Por terem menos visibilidade e escassez de patrocinadores, os desfiles na Intendente servem de espaço para experimentações. É neste território fértil e de improvisos que a Veados finca sua bandeira, repleta de significados polêmicos no Brasil atual. "O humor nos move. Batizar uma escola de samba, que vai exaltar a luta por um Brasil melhor, é nossa melhor resposta a essa realidade", diz Saol.

Os desfiles na Intendente em nada lembram o glamour da Marquês de Sapucaí. Atualmente, duas ligas brigam pelo controle de organização da base da pirâmide carnavalesca: a Superliga Carnavalesca do Brasil e a Liga Independente Verdadeira Raízes das Escolas de Samba (LIVRES). Estão lá algumas escolas já conhecidas dos foliões, como a Tradição, Alegria da Zona Sul, Acadêmicos da Rocinha e Caprichosos de Pilares.

Bandeiras da escola - Divulgação - Divulgação
Bandeiras da escola
Imagem: Divulgação

Perdas econômicas

A Veados, que evoca Karl Marx para purpurinar na folia carioca, tem como enredo para 2022 "Espero tua revolta", desenvolvido pelo carnavalesco Felipe Santos, de 28 anos, negro e gay, estudante de geologia da UERJ. A sinopse critica as perdas econômicas da classe trabalhadora nos últimos anos. "A indignação começou lá atrás/Quando acharam que babá não merecia voar/'Pisar na Disney já é demais/Pra casa de madame não voltarão jamais".

Ao contrário do que é tradicionalmente visto entre as escolas, quem puxa o samba da Veados é uma mulher, a cantora de MPB Lu Fogaça. "Minha causa é das mulheres, em especial mulheres negras. O samba é um universo machista desde a sua criação, mas esse quadro vem mudando", afirma.

O refrão que promete embalar o desfile lembra uma marchinha dos jocosos blocos de rua: "Lá vem os Veados sambando na pista/Com muito orgulho de ser comunista/Mostrando que o Brasil tem salvação... Fascistas não passarão". E, antes que alguém os mande sambar em Cuba ou Venezuela, o carnavalesco avisa: "Carnaval é um ato político e sempre foi. É uma junção daqueles que são oprimidos por preconceitos da sociedade".

Subversiva

A agremiação aproveita a curiosidade em torno de seu surgimento para levantar questões importantes no meio do samba. No seu perfil oficial do Instagram (@veadoscomunistas), debate-se desde a escassez de carnavalescos negros nos barracões e o processo de embranquecimento do carnaval até desdobramentos políticos do país. "Nossa página já foi denunciada algumas vezes. Há quem ache um absurdo lutarmos por comida no prato ou pela causa dos povos indígenas", lamenta Saol.

Disposta a promover a integração entre diversas bandeiras identitárias, a Veados Comunistas aposta no seu caráter subversivo para sacudir as arquibancadas muito além do barulho que causa nas redes sociais.