Mães fogem de violência no exterior, enfrentam ação da AGU e perdem filhos

O cumprimento de um acordo do qual o Brasil é signatário desde 1999 tem, na prática, colocado o Estado contra mães brasileiras que viviam no exterior e, com seus filhos, voltaram ao país fugindo da violência de seus ex-companheiros.

A Convenção sobre os Aspectos Civis do Sequestro Internacional de Crianças, conhecida como Convenção de Haia, determina que os Estados garantam o retorno imediato de crianças retiradas ilegalmente (sem autorização de um dos genitores) dos países onde moravam.

A AGU (Advocacia-Geral da União) representa o Estado brasileiro nas ações de repatriação. Ao assegurar a aplicação do acordo mesmo em casos envolvendo acusação de violência doméstica, a AGU acaba favorecendo os estrangeiros.

Segundo levantamento da Revibra, uma rede que auxilia mulheres imigrantes na Europa, 90% das mães brasileiras que voltam com os filhos sofreram violência doméstica e, em alguns casos, viram as crianças sendo abusadas sexualmente pelos pais.

Entre 2020 e 2023, o Brasil devolveu 47 crianças a genitores que vivem no exterior. Algumas foram entregues a pais que de quem não se lembravam mais, não falavam o mesmo idioma que elas ou de quem sentiam medo.

Embora a convenção só possa ser modificada com acordo de todos os signatários — são 103 países —, especialistas defendem que o Brasil adote o ordenamento jurídico local, como fazem Austrália e Uruguai, segundo aponta levantamento da Revibra.

A principal reivindicação é a de que os juízes considerem a lei Maria da Penha e sigam o protocolo do CNJ (Conselho Nacional de Justiça) que determina julgamentos com perspectiva de gênero.

Dopada para a Suíça

Uma das crianças repatriadas nesse período foi a filha de uma empresária de São Luís (MA). A menina M.* tinha 12 anos e vivia havia 4 anos no Brasil quando, às 10h15 no dia 10 de junho de 2022, policiais federais foram buscá-la num hotel nos Lençóis Maranhenses, onde passava dias com a família.

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A menina foi colocada em uma das viaturas e a empresária, em outra.

Quatro horas depois, mãe e filha estavam em um tribunal em São Luís. Por volta da meia-noite, a mãe foi dispensada. A filha, 48 horas mais tarde, embarcou para a Suíça — dopada, segundo a mãe.

M. viajou na companhia do pai, o suíço B.H., que, segundo a mãe, a agredia fisicamente e a manteve em cárcere privado durante o casamento. Ela também suspeitava que o homem abusava sexualmente da filha.

A defesa de B.H. disse ao UOL que não comentaria o caso.

Um relatório do Hospital Universitário de Berna, na Suíça — no qual a menina foi internada com "vermelhidão na parede interna da vagina, próximo ao clitóris, leve ruptura no clitóris e hematomas" - concluiu não haver "evidência de agressão sexual ou outro uso de violência".

'O melhor para a criança'

Segundo um laudo psicológico assinado pela psicóloga Claudia de Castro Silva, a garota se recusava a manter contato com B.H., a quem acusava de fazer "maldade" com ela. O laudo foi solicitado pelo juiz Clodomir Sebastião Reis, para avaliar se a menina deveria retornar à Suíça, conforme ação movida pela AGU.

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Mesmo assim, o juiz concluiu que, embora "o apego afetivo da criança" tivesse "como objeto a mãe", isso não era "forte o bastante" para mantê-la no Brasil.

Ao UOL Reis disse que não falaria do caso, mas afirmou que suas decisões, de forma geral, consideram o que é melhor para a criança. "Não me interessam a mãe ou o pai, mas o bem-estar do menor."

Violência doméstica

A AGU representa o Estado brasileiro "de modo a preservar as obrigações internacionais assumidas pelo país", como informou o órgão ao UOL, por meio de sua assessoria de imprensa.

"As mães se surpreendem ao perceber que o próprio país está ao lado do agressor. Apesar de entender que é uma questão de cooperação internacional, não tiro a razão dessas mulheres", afirma Stella Furquim, do Gambe (Grupo de Apoio a Mulheres Brasileiras no Exterior).

Rés com renda de até R$ 2.000 ou as que comprovem que não podem pagar por assistência jurídica são atendidas pela DPU (Defensoria Pública da União). As demais têm que contratar advogado particular.

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Outra limitação para quem precisa da DPU é o fato de o órgão estar presente em apenas 30% dos municípios do Brasil. São 700 defensores para atuar em todo o país, em todos os casos.

Segundo Érico Lima de Oliveira, defensor público federal e mestre em direito internacional pela USP, há "pouca margem de manobra" para a defesa de pais ou mães que levam os filhos para outro país sem autorização.

Há, atualmente, 181 casos assim na SNJ (Secretaria Nacional de Justiça). Destes, 91 envolvem brasileiros que trouxeram os filhos ilegalmente para o Brasil, sendo 75 mães.

Sem reciprocidade

Os processos de subtração internacional de menores se iniciam na Acaf (Autoridade Central Administrativa Federal). Quando não se chega a um acordo, o caso é encaminhado para a AGU, que atua apenas nos casos em que as crianças são trazidas para o Brasil.

Na situação contrária — um brasileiro que teve o filho levado para país estrangeiro ilicitamente —, o genitor precisa contar com assistência internacional.

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O problema, apontam ativistas e mães, é que outros países não têm o mesmo empenho em atuar em favor de estrangeiros.

Nos Estados Unidos, país para onde mais são levadas crianças brasileiras ilegalmente (31 casos em andamento na SNJ), os processos param "quando não há acordo entre os genitores pela dificuldade de se pagar um advogado", informou Michele Najara, coordenadora geral da Acaf, em sessão no Senado para discutir o tema.

"É complicado quando a assistência não é oferecida de forma gratuita", afirmou Michele. Mesmo assim, "não temos que abrir mão da nossa assistência como punição a outros países por não terem esse auxílio".

Cada país signatário da Convenção de Haia tem sua própria autoridade central. Segundo Michele Najara afirmou no Senado, as autoridades "se comportam de jeitos diferentes".

Num caso recente, contou, a dos EUA se recusou a providenciar visita a uma criança brasileira que estava no país, como determinou a Justiça brasileira. Alegou que essa não era atribuição do órgão. A Acaf precisou recorrer ao consulado brasileiro para que fossem obtidas informações sobre a criança.

Letra morta

As exceções previstas - quando as crianças correm risco na volta ou estão integradas ao país para o qual foram levadas - "devem ser aplicadas apenas na medida em que o podem ser, mas não além disso, (...) para que a Convenção não se torne letra morta", informa o Guia de Boas Práticas sobre o acordo, lançado em 2020.

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Dos casos que estão em andamento na SNJ de genitores que voltaram ao Brasil com os filhos ilicitamente, a maioria veio da Europa e da América do Norte. O país campeão é Portugal, com 16 casos, seguido por Estados Unidos, com 14.

Interpretação ampliada

Na Austrália e no Uruguai, violência contra os genitores é motivo suficiente para que as crianças levadas ilegalmente para lá não sejam repatriadas.

Um projeto de lei em tramitação no Senado propõe o mesmo para o Brasil.

"O Ministério das Mulheres é favorável à rediscussão sobre esse ponto do tratado [relativo à violência]", informou o órgão ao UOL. Em julho, um fórum na África do Sul, organizado pela Convenção, irá tratar do assunto.

No Brasil, embora a Acaf tenha informado ao UOL que se "adota uma interpretação ampliada para abranger qualquer contexto de violência, seja contra o genitor ou genitora e a criança", mulheres que afirmam ter sido vítimas de violência continuam a perder filhos.

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Este foi o caso da nutricionista R. C., do Rio. No dia 14 de junho de 2023, policiais federais armados foram à sua casa, às 6 da manhã, para pegar as filhas de 4 e 6 anos que "dormiam tranquilas e seguras e entregá-las ao agressor", segundo a nutricionista.

Desde então, a mãe diz que não tem contato com as meninas. A mãe afirma ter flagrado o pai das crianças, o irlandês T.M., abusando sexualmente da mais velha quando ela tinha 2 anos. A nutricionista diz que foi mantida em cárcere privado pelo homem até conseguir fugir do país, em 2019.

O advogado de T. M. disse ao UOL que as acusações são falsas.

O irlandês conseguiu o retorno das meninas após acionar a Convenção de Haia.

*Os nomes dos envolvidos foram omitidos para preservar a identidade da menor de idade.

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