Por semana, dois médicos são denunciados por assédio sexual em SP

Das 85 denúncias de crime sexual que chegaram ao Cremesp (Conselho Regional de Medicina de São Paulo) em 2023 (até 14 de novembro), apenas seis —7% do total— evoluíram para um processo contra os médicos envolvidos.

Isso corresponde a uma média de duas denúncias por semana.

Por meio da assessoria de imprensa, o Cremesp disse ao UOL que os processos estão em sigilo e, por isso, não pode informar o desfecho deles.

Ginecologistas e obstetras são os especialistas mais denunciados por abuso e assédio sexual (cerca de 24%), de acordo com a cartilha "Ética em ginecologia e obstetrícia", cuja quinta edição foi publicada pelo Cremesp em 2018.

Conselhos de medicina são autarquias federais com poder para receber denúncias de pacientes, investigar e aplicar penas em médicos que cometem crimes. As decisões dos conselhos regionais podem ser contestadas no CFM (Conselho Federal de Medicina), uma espécie de Suprema Corte da categoria.

Sexo oral durante a consulta

Num caso recente, o Cremesp arquivou a denúncia de abuso sexual contra um ginecologista e, logo depois, uma juíza condenou-o a pagar R$ 25 mil de indenização para a paciente que o havia denunciado. Para a juíza, houve abuso. Para o Cremesp, não.

Em sua defesa, o médico disse que a paciente estava tomando remédio à base de testosterona, que aumenta a libido e "pode acarretar fantasias de cunho sexual", como registrou a juíza Lívia Maria de Oliveira Costa —foi ela quem o condenou em primeira instância na 5ª Vara Cível do Foro da Comarca de Santos, no litoral paulista, em 25 de outubro.

A psicóloga I.G.S. diz que o caso aconteceu em 18 de outubro de 2021, quando ela tinha 38 anos. Ela relata que estava deitada na maca do consultório do médico Marcelo Moura Guedes, então com 54 anos, quando, durante um exame ginecológico, sentiu a língua dele em seu clitóris.

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"Entrei em choque", ela diz.

Culpa e vergonha

Em entrevista ao UOL, I. G. S. disse que era paciente de Guedes havia 12 anos e tinha ido ao consultório levar exames. Foi surpreendida com a orientação para tirar a roupa e submeter-se a nova avaliação física, relata.

Eu vinha da academia de ginástica. Disse que estava suja, mas ele argumentou que era praxe fazer o exame
I.G.S, paciente que afirma ter recebido, sem ter consentido, sexo oral de ginecologista

I.G.S. conta que, antes do sexo oral sem consentimento, o médico aplicou lubrificante no clitóris dela e manipulou-o com os dedos. "Por ter uma relação de confiança com ele, não consegui reagir. Saí do consultório com muita culpa e vergonha."

Ela afirma ter ouvido um pedido de desculpas do médico pelo ocorrido — antes, porém, com o zíper da calça aberto e as mãos nos seios da paciente, ele a teria chamado de "gostosa" e afirmado estar "com tesão".

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Em decorrência do ocorrido, afirma a psicóloga, ela precisou se afastar do trabalho, fazer terapia duas vezes por semana e evitar o convívio social. "Desenvolvi furúnculos, tive corrimento, minha vida sexual mudou", diz.

'Conduta desabonadora'

Anna Paula Marszoleck Albino, advogada de defesa de Guedes, disse ao UOL que o cliente é "inocente, possui 32 anos de profissão e nenhuma conduta desabonadora".

Afirmou ainda, por meio de mensagem de WhatsApp, que o "processo na esfera cível não acabou e I. deveria ser mais cautelosa no que fala, bem como a imprensa".

O processo criminal contra Guedes foi arquivado. O Ministério Público concluiu que não havia "indícios da existência material do crime".

A juíza da Vara Cível argumentou que, "na esmagadora maioria dos casos, fatos dessa natureza não são presenciados por terceiros".

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Para praticar o ato, o abusador se vale justamente da intimidade conquistada
Lívia Maria de Oliveira Costa, juíza da Vara Cível em Santos

2023 é campeão de registros

Sobre o caso, o Cremesp afirmou ao UOL que "as esferas são distintas, o Cremesp não tem acesso aos detalhes do processo na esfera cível e o processo também foi arquivado na esfera criminal".

No Portal da Transparência do Cremesp, há informações sobre sindicâncias instauradas por assédio sexual desde 2018.

Faltando menos de um mês para acabar 2023, o ano figura como o campeão de casos —em segundo lugar está 2020, auge da pandemia de covid-19, com 84 denúncias.

O UOL perguntou ao Cremesp quantas denúncias de crimes sexuais foram arquivadas no período, mas foi informado que o órgão não possui "levantamento sobre arquivamento especificamente com este assunto".

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O Cremesp é o conselho regional com maior número de médicos do Brasil. São 163.430, sendo 10.537 ginecologistas e obstetras.

'Absoluta ignorância das pacientes'

Uma recomendação do Cremesp de 26 de julho de 1988 estabelece que "os médicos, ao atenderem pacientes submetendo-as a exames ginecológicos, preferencialmente pratiquem referidos atos na presença de auxiliar e/ou de pessoa acompanhante de paciente".

A recomendação não é seguida por toda a categoria. Na consulta com I*, Marcelo Moura Guedes estava sozinho —em depoimento à Justiça, ele confirmou a informação e disse que a porta do consultório estava apenas encostada.

Segundo o Cremesp, a recomendação de acompanhante durante as consultas relaciona-se ao "grande número de denúncias" de crimes sexuais.

"A análise das denúncias muitas vezes revela apenas absoluta ignorância das pacientes com relação a exames de mama e/ou mau entendimento do que venha a ser 'exame especular' ou 'exame de toque', confundindo-os com 'atos libidinosos'", informa o Cremesp na cartilha "Ética em ginecologia e obstetrícia".

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Outra pessoa na sala durante o exame físico evitaria qualquer desconforto e seria uma garantia para o médico. Quem não comete violência não se incomoda com uma acompanhante
Laura Cardoso, advogada de I.G.S

CFM não informou números

Entre janeiro de 2018 e outubro de 2023, 52 processos ético-profissionais relacionados a abuso e assédio sexual foram remetidos pelo Cremesp ao CFM. Ao todo, foram feitas 465 denúncias no período.

A reportagem pediu ao CFM informações sobre o desfecho dos processos, mas não obteve retorno até o fechamento desta reportagem. As penas previstas para os médicos condenados vão de advertência confidencial a cassação do registro profissional.

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