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'Pandemia destruiu meu casamento': os traumas indiretos ligados à covid-19

Imagem: iStock

Do VivaBem, em São Paulo

15/08/2022 04h00

O olhar apavorado de seus colegas de trabalho no Hospital Estadual do Acre durante a fase mais crítica da pandemia ainda está vivo nas memórias da enfermeira Carla Bibiane, 46. Havia o medo de lidar com uma doença até então desconhecida e a ansiedade acerca do que poderia suceder a cada plantão.

Para ela, no entanto, a situação responsável por criar suas lembranças mais traumáticas sobre a crise sanitária aconteceu fora do trabalho. "Lembro com detalhes do dia em que eu levei meu marido, uma pessoa com câncer, a uma consulta e o médico orientou que a gente não morasse mais juntos", conta. "Entramos na clínica de mãos dadas e saímos separados. Depois desse dia, nunca mais fomos marido e mulher."

De acordo com Dorisdaia Humerez, coordenadora da Comissão Nacional de Saúde Mental do Cofen (Conselho Federal de Enfermagem), profissionais da saúde experimentaram grande sofrimento mental com o afastamento de seus entes queridos durante a pandemia. Muitos só se sentiram seguros para voltar a dividir o mesmo teto com seus familiares após o início da campanha de vacinação no Brasil, em janeiro de 2021. Em outros casos, porém, o afastamento temporário se transformou em separação definitiva.

Antes conhecida por sua personalidade atenciosa no trabalho, Carla se viu gritando com colegas e sendo grossa com os pacientes após o acontecimento, além de se deparar com dificuldades para dormir e alterações em seu peso. Ela, que também é coordenadora administrativa e assistencial no centro cirúrgico do Hospital do Rim, no Acre, cogitou desistir da carreira.

Eu tinha muito medo de pegar covid e matar meu marido. Isso não aconteceu. Mesmo assim, a pandemia roubou o que era mais precioso para mim, que é a minha família.

A enfermeira Carla Bibiane, 46, desenvolveu transtorno de estresse pós-traumático durante a pandemia Imagem: Arquivo pessoal

A enfermeira considera que a ruptura do arranjo familiar foi uma consequência indireta da pandemia e foi mais traumática do que sua própria experiência profissional durante a crise sanitária.

Enquanto a maioria dos enfermeiros ficaram impactados pelo trauma do atendimento aos pacientes com covid, a morte e o luto já eram uma vivência comum para mim nos centros cirúrgicos. O que não era comum era eu não ter para onde voltar no final do dia, porque ser enfermeira na pandemia acabou aumentando minha ausência em casa e destruindo meu casamento.

Diagnosticada com transtorno de estresse pós-traumático, ou TEPT, em janeiro deste ano, atualmente Carla recebe tratamento psiquiátrico e psicológico para lidar com alguns dos sintomas que ainda prejudicam sua qualidade de vida, como memórias recorrentes e perturbadoras sobre a pandemia. "Se não fosse o tratamento, eu teria chegado à agonia do suicídio", analisa.

Incidência de TEPT aumentou

O psiquiatra Michel Haddad, do HSPE/IAMSPE (Hospital do Servidor Público Estadual) e pesquisador do departamento de psiquiatria da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), afirma que o número de diagnósticos de TEPT cresceu desde o início da pandemia de covid-19.

O cenário já era previsto pelos especialistas: evidências científicas demonstram que, embora cerca de 80% das pessoas se recuperem no primeiro mês após um evento traumático sem consequências de longo prazo, em uma epidemia de larga escala, como a do coronavírus, traumas emocionais duradouros podem surgir, principalmente entre profissionais da saúde.

As reações vão depender da forma como cada um enxerga a situação traumática, mas a predisposição genética para desenvolver transtornos mentais também conta.

No geral, o TEPT é caracterizado por sintomas como:

  • Memórias recorrentes, involuntárias e perturbadoras do evento traumático;
  • Pesadelos recorrentes com o evento;
  • Agir ou sentir como se o evento estivesse acontecendo de novo, desde flashbacks até perda total de consciência do ambiente atual;
  • Evitar pessoas, lugares, atividades e situações associadas ao evento ou que desencadeiam memórias do episódio traumático;
  • Mudanças negativas no humor;
  • Alterações de sono, irritabilidade e falta de apetite;
  • Hipervigilância (estado de alerta extremo).

No contexto pandêmico, estudos apresentam uma prevalência de 10 a 15% de TEPT em indivíduos que foram hospitalizados por causa da doença, aponta o médico psiquiatra Rodolfo Furlan Damiano, da FMUSP (Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo).

Mas a infecção pelo vírus não é o único fator que originou quadros do transtorno associados à pandemia. Em fevereiro do ano passado, um estudo já alertava para o fato de que as angústias causadas pela crise sanitária também poderiam levar a sintomas do problema. Exemplos citados pela pesquisa clínica foram o medo de pegar a doença ou passá-la adiante e o contato indireto com a covid-19, como o consumo excessivo de notícias e o isolamento social.

"Um soldado que está na guerra não precisa necessariamente ter passado por um combate ou ter sofrido uma quase morte para desenvolver estresse pós-traumático. Só o fato de ele estar lá na guerra já pode causar o quadro", compara Leonardo Tavares, neuropsiquiatra e professor da UFPE (Universidade Federal de Pernambuco).

'Ainda não consegui parar de higienizar embalagens'

A ex-motorista de aplicativo Cecília*, 43, e seus entes queridos não pegaram covid-19. No entanto, por ter acompanhado de perto a morte de sua cunhada pelo vírus H1N1 (causador da "gripe suína"), em 2010, a profissional autônoma entrou em pânico quando os primeiros casos de coronavírus foram notificados no Brasil, 12 anos mais tarde.

"Tinha medo de morrer e deixar meu filho e meu esposo", diz. "Sentia dificuldades para dormir e ficava sempre focada na quantidade de mortes e nos nomes dos mortos por covid na minha cidade."

Quando voltava das poucas idas ao mercado, tanto ela quanto o marido e o filho deixavam os sapatos no portão e tomavam banho antes de circularem pela residência. Também higienizavam as compras com álcool em gel.

Dois anos após o início da pandemia, no entanto, os hábitos ainda permanecem incorporados à rotina de Cecília, ainda que higienizar embalagens, por exemplo, não seja mais um método considerado eficaz para evitar a doença —os mais eficazes são a vacinação e o uso de máscaras em ambientes fechados.

"Eu já deixo meu filho trazer amigos em casa e também já fomos em pizzaria e festa junina, mas ainda não abandonei os outros hábitos", diz.

Segundo Cecília, apesar dos desafios que ainda precisa superar, o medo não lhe paralisa com a mesma intensidade do que antes. A ex-motorista, que já tratava um quadro de depressão antes de receber o diagnóstico clínico de TEPT, atribui esses avanços no cotidiano familiar ao tratamento psicológico que recebeu para lidar melhor com os sintomas do transtorno.

'Ainda não consegui parar de higienizar embalagens de supermercado', diz ex-motorista de aplicativo diagnosticada com TEPT durante a pandemia Imagem: iStock

Novas abordagens como tratamento

Embora o tratamento para o TEPT muitas vezes também envolva medicamentos, a psicoterapia é considerada a principal opção, pois ajuda a pessoa a lidar melhor com o trauma, reduzindo sintomas como ansiedade, estresse e insônia.

A pesquisadora Érica Panzani Duran, do Instituto de Ciências da Saúde da UFBA, está tentando descobrir se haveria uma abordagem mais eficaz no tratamento de pessoas que desenvolveram o distúrbio por causa da pandemia. Sua pesquisa de doutorado, iniciada em 2021, quer testar três métodos de psicoterapia (terapia cognitiva processual, mindfulness e psicoterapia positiva) neste grupo-alvo durante três meses e, depois, avaliar os participantes após um ano.

Quem perdeu entes queridos para a doença tende a apresentar os sintomas mais graves, de acordo com a psicoterapeuta. Fatores indiretamente associados à pandemia, como o aumento de brigas conjugais, separações e a violência doméstica, também são apontados como possíveis desencadeadores do transtorno.

Se tratado, o TEPT é considerado um quadro reversível. "Às vezes, é difícil buscar ajuda. Mas é o único caminho para lidar com a dor", diz a enfermeira Carla Bibiane.

*O nome da entrevistada foi alterado para preservar sua identidade.

Fontes: Maria Amélia Penido, professora de terapia cognitivo-comportamental na PUC-RJ (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro); Irismar Reis, psiquiatra e terapeuta cognitivo, professor aposentado do Departamento de Neurociências e Saúde Mental da UFBA (Universidade Federal da Bahia); Lina Sue Matsumoto, psicóloga e pesquisadora do Instituto de Psiquiatria da USP (Universidade de São Paulo.

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