Topo

Equilíbrio

Cuidar da mente para uma vida mais harmônica


Tem uma lembrança feliz? Guarde-a bem! Ela pode tratar depressão e traumas

iStock
Imagem: iStock

Do VivaBem, em São Paulo

23/07/2022 04h00

Muitas pesquisas já mostraram o que acontece no nosso cérebro quando recordamos acontecimentos que nos causaram emoções desagradáveis, como a tristeza, a raiva, o medo e o nojo. Mas a ação das memórias felizes ainda é pouco explorada pela neurociência.

"Temos uma quantidade de informação muito maior sobre as mudanças estruturais e funcionais do cérebro associadas às emoções negativas, já que em grande parte dos transtornos psiquiátricos elas estão presentes, enquanto os dados sobre memórias positivas são relativamente poucos e mais recentes", diz Leonardo Machado Tavares, médico psiquiatra especializado em neuropsiquiatria e professor adjunto da UFPE (Universidade Federal de Pernambuco).

Segundo o médico, um dos principais estudiosos sobre o assunto no Brasil, o papel das emoções e memórias positivas no cérebro vem sendo explorado como mais uma opção de abordagem terapêutica em casos de depressão e transtorno de estresse pós-traumático, ou TEPT, problemas intimamente associados às lembranças ruins.

Como as memórias felizes agem no cérebro

Quando lembramos de um acontecimento marcante, não é difícil experimentar na pele o ditado popular "recordar é viver": é como se entrássemos num túnel do tempo para revisitar as emoções que aquela situação nos trouxe, sejam elas boas ou ruins.

Isso acontece porque todos os sentidos —tato, paladar, olfato, audição e visão— são instrumentos da memória, explica Sonia Maria Dozzia Brucki, coordenadora do Grupo de Neurologia Cognitiva e do Comportamento do HC-FMUSP (Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo).

fotografias - iStock - iStock
Evocação de memórias positivas já é utilizada como opção de abordagem terapêutica em casos de depressão e transtorno de estresse pós-traumático
Imagem: iStock

"Em geral, quando você se lembra de algum fato, as áreas cerebrais que se ativam são relacionadas às mesmas que se ativaram quando você viveu aquela experiência, que pode incluir o visual, o auditivo, o olfativo, o prazer ou o desprazer que aquela situação te deu. Se você tem lembranças positivas, por exemplo, essa sensação de bem-estar será reativada, e vice-versa", diz a neurologista.

Apesar disso, as memórias de cunho "positivo" e "negativo" não ativam as mesmas regiões do cérebro, segundo uma revisão sistemática publicada na revista Brazilian Journal of Psychiatry em 2015.

Embora haja uma sobreposição das regiões do cérebro envolvidas na formação e regulação de emoções positivas e negativas, o que Tavares, da UFPE, e seu colega Amaury Cantilino concluíram foi que as emoções positivas, como a felicidade, ativam regiões cerebrais específicas.

"Os estudos já produzidos sobre o assunto corroboram que, quando tenho memórias e emoções negativas, estou ativando mais o lado direito do cérebro", explica Tavares. "Já quando temos memórias positivas, nosso cérebro é mais ativado no hemisfério esquerdo, especialmente a parte da frente, lá no córtex pré-frontal, além de uma região chamada estriado ventral, que é onde fica o núcleo accumbens, também conhecido como o 'centro do prazer'", diz o psiquiatra.

O núcleo accumbens, ou NAcc, é uma parte do cérebro que desempenha funções relacionadas à recompensa, ao prazer e ao vício. É a mesma área ativada durante o sexo ou quando temos uma refeição saborosa, por exemplo.

Levando em conta esse circuito cerebral associado a memórias positivas, um outro estudo, também de 2015, mostrou que a ativação de um circuito neural que representava uma memória prazerosa poderia causar efeitos antidepressivos em camundongos.

cérebro - iStock - iStock
Emoções positivas, como a felicidade, ativam regiões cerebrais específicas, principalmente no hemisfério esquerdo
Imagem: iStock

A pesquisa, publicada na revista Nature, levantou a hipótese de que a manipulação desses circuitos poderia ser explorada em humanos para o tratamento da depressão no futuro.

"Quando a gente fala de quadros depressivos, há uma maior dificuldade de lembrar ou de pensar em coisas agradáveis, então trazer para esses indivíduos memórias positivas pode ter um efeito muito benéfico", avalia Cristiane Furini, pesquisadora do Laboratório de Cognição e Neurobiologia da Memória do InsCer (Instituto do Cérebro) da PUC-RS (Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul).

Recordar-se de momentos positivos, no entanto, não é equivalente a apagar as memórias negativas que fazem parte de nossa história.

"O que percebemos na prática clínica é que é como se, ao dividir o espaço mental com as lembranças ruins, as memórias e emoções boas diminuíssem o impacto daquelas que são negativas", diz Tavares, da UFPE.

O que é psiquiatria positiva

Uma das linhas psicoterápicas que trabalha com a recuperação de memórias agradáveis é a psiquiatria positiva. Trata-se de um campo de estudo focado no bem-estar humano e nas condições, forças e virtudes do ser humano.

A abordagem é atualmente aplicada pela psicóloga Lina Sue Matsumoto, pesquisadora do IPq-USP (Instituto de Psiquiatria da USP), em um protocolo de pesquisa que envolve pessoas que foram diagnosticadas com estresse pós-traumático por causa da pandemia de covid-19 ou cujos quadros se intensificaram durante a crise sanitária.

Esses traumas, segundo Matsumoto, envolvem luto prolongado, culpa, morte e medo de morrer de covid.

Por meio do aumento dos níveis de compaixão e autocompaixão, explica a psicóloga, o objetivo do protocolo é levar a pessoa a "processar" a memória traumática, aceitando, por exemplo, que não tinha controle sobre determinada situação e que há acontecimentos imprevisíveis na vida de dor e sofrimento.

"Muitas pessoas tiveram entes queridos que foram para a UTI e morreram depois de poucos dias. A pessoa pensa que poderia ter feito alguma coisa para evitar aquilo e se sente culpada. Mas, lá no comecinho de 2020, ela não podia ter feito nada, porque naquela época não tinha sequer vacina", diz Matsumoto.

Segundo ela, quando essa pessoa consegue reconhecer que fez o melhor que podia fazer naquelas condições, se perdoar e se lembrar das memórias boas com o ente querido que se foi, são sinais de que a pesquisa está dando certo.

mulher triste de máscara - iStock - iStock
Protocolo que utiliza práticas da psiquiatria positiva está sendo aplicado em estudo do IPq-USP com pessoas diagnosticadas com estresse pós-traumático por causa da pandemia
Imagem: iStock

Em seu mestrado, desenvolvido em 2018 na FMUSP, a psicóloga já havia estudado a eficácia da "terapia focada na compaixão" em grupo nos casos de TEPT. O método foi desenvolvido na década de 1980 pelo psicólogo Paul Gilbert e considera que sentimentos de vergonha, culpa e excessiva autocrítica, ativados no momento do evento traumático, impedem o processamento da memória associada ao trauma.

A pesquisa clínica treinou habilidades de compaixão nos pacientes, com exercícios como o "diário de gratidão", em que as pessoas eram convidadas a recuperar memórias positivas ao anotar três motivos pelos quais eram gratas. Ou a "carta da gratidão", cuja ideia é fazer com que o paciente pense no episódio traumático, mas focando em uma pessoa que o ajudou a enfrentar a situação e, então, envie um agradecimento a ela.

De acordo com a psicóloga, o aumento nos níveis de autocompaixão esteve relacionado à diminuição dos níveis de culpa e ansiedade.

Segundo Brucki, que também é membro do Departamento Científico de Neurologia Cognitiva e do Envelhecimento da ABN (Academia Brasileira de Neurologia), a chamada terapia das reminiscências, bastante utilizada em pessoas com demência, também mostra como a recuperação de memórias autobiográficas felizes —através de fotos e música, por exemplo— pode auxiliar a manter o bem-estar e melhorar o humor de idosos.

mulher triste - Anthony Tran/Unsplash - Anthony Tran/Unsplash
Lembrar de acontecimentos ruins auxilia na sobrevivência humana, mas excesso de pensamentos demanda atenção
Imagem: Anthony Tran/Unsplash

As memórias ruins e seu papel na nossa sobrevivência

Uma pessoa que sofreu um acidente de carro certamente gostaria de apagar qualquer memória atrelada ao episódio dramático. Mas existe um motivo biológico para que lembranças ruins permaneçam em nosso cérebro.

Segundo Furini, da PUC-RS, as memórias ditas "negativas" sempre tiveram, ao longo da evolução, um efeito protetor para a espécie humana.

Isso porque elas servem para nos lembrar de evitar riscos aos quais nos submetemos no passado e ameaçaram nossa sobrevivência, por exemplo. É o caso do motorista que se acidentou por dirigir embriagado ou não prestar atenção no trânsito.

"Memórias de acontecimentos ruins têm um papel importante para a nossa sobrevivência. A questão é como exatamente a gente lida com essas memórias e o impacto que elas têm sobre nós", diz a especialista em memória.

"Se elas atrapalham a minha qualidade de vida, me tiram o sono e provocam crise de ansiedade, por exemplo, é necessário fazer um acompanhamento profissional para manejar essas lembranças", acrescenta Furini.

"Mas não existe uma dicotomia. Da mesma forma que as memórias boas podem diminuir os fatores emocionais negativos de outras memórias, as lembranças ruins também têm o seu papel. A chave é entender como elas estão nos impactando", diz.