'Quem entrava nos quartos tinha medo', diz auxiliar de limpeza hospitalar
Giulia Granchi
Do VivaBem, em São Paulo
09/10/2021 04h00
Quando foi contratada, em fevereiro de 2019, cerca de um ano antes da chegada do coronavírus (Sars-CoV-2) ao Brasil, Roseane Cristina Ribeiro, 44, já passava os dias usando máscara, luva e outros equipamentos de proteção no Hospital São Domingos, em São Luís (MA).
Trabalhando como auxiliar de serviços gerais, suas principais responsabilidades eram a limpeza e troca de lençóis e toalhas dos quartos. Com a pandemia e a necessidade ainda maior de higienizar os ambientes, ela aceitou ser alocada para a área onde ficavam os pacientes isolados por covid-19.
"Muitos funcionários, que precisariam entrar nos quartos, ficaram com medo e não quiseram trabalhar no setor. O hospital ofereceu um pagamento adicional por insalubridade e eu aceitei. A gente não trabalhava dobrado, mas o cuidado era. Mesmo com as tarefas não aumentando muito, foi bem mais cansativo", lembra Roseane sobre o começo da pandemia.
Por dividir a casa com os pais idosos, esse cuidado redobrado não acabava ao encerrar o trabalho. A rotina para encontrar a família era metódica como precisava ser, já que um descuido poderia significar levar a doença para o lar.
Ao fim do expediente, ela tomava banho no hospital e, antes de pisar em casa, todas as roupas usadas na rua eram deixadas de lado. O esforço deu certo. Após 16 meses, ela e os familiares não foram infectados.
Parte do trabalho de Roseane era feita na UTI de covid-19, a área mais temida de qualquer hospital que atendesse os casos da doença.
Cansei demais psicologicamente na UTI. Olhar os pacientes naquele estado, ver o sofrimento deles... Isso deixa a gente abatido. Sem falar que ter de estar atenta o tempo todo causa uma exaustão mental.
Com alguns pacientes internados há meses, Roseane entrava e saía do quarto de alguns como quem visita amigos. Ouviu histórias e respirações ofegantes, se aproximou de acompanhantes, que compartilhavam as preocupações, presenciou lágrimas, momentos alegres e despedidas. "Vi muitas pessoas morrerem, mas a gente não desistiu, não", diz.
Dos dias mais intensos, a auxiliar de limpeza sabe que vai levar a lembrança daqueles que compartilharam o ambiente do hospital com ela por vários meses.
"Tem um paciente que foi internado em fevereiro e está aqui até hoje, chamamos ele de 'Seu Marcão'. Foi intubado, ficou muito debilitado... Ouvi a irmã dele chorando uma vez e dizendo que desistia, que entregava para Deus. Parecia que não ia dar, mas ele se recuperou. Foi incrível, eu desacreditei. Hoje ele está bem, já conversa, já anda e deve ir para casa em breve", conta.
Mesmo com medo, ao colocar-se no lugar de quem estava internado por uma doença ainda muito misteriosa, a auxiliar de limpeza tentou passar o máximo de conforto possível, e não só nos travesseiros cheirosos e lençóis limpinhos.
"Uma vez entrei, logo no começo da pandemia, em um quarto para fazer a limpeza, toda feliz, falante, com o astral lá em cima, e a paciente sozinha. Ela disse: 'Que bom que você está alegre, porque todo mundo entra aqui com medo.' Eu também estava com medo, mas não queria demonstrar. Tentava só manter a distância física e ser rápida."
A mudança na equipe médica e técnica, para Roseane, foi notável. "Vi profissionais chorando, a ponto de largar tudo e desistirem. Vi médicos praticamente morarem na UTI, dedicando todo o tempo que tinham. Alguns, como o doutor Bernardino, também faziam esse esforço para alegrar os profissionais e pacientes. Ele passava nos quartos dizendo, 'Bora acordar, bora passear, gente!'"
O cuidado nas áreas de covid-19 do hospital segue até hoje, mas com menos intensidade. O Maranhão registrou cerca de 300 novos casos da doença por semana em setembro. Em junho, eram cerca de 700. Da experiência, ela diz levar ensinamentos para toda a vida.
"A gente fica pensando, estamos aqui de passagem. Comecei a valorizar mais as pessoas, curtir mais meus dias. Agora fico mais com minha família e descobri, em casa mesmo, coisas que nem sabia que tinha prazer, como fazer um lanche junto com a família e dar risada. Tenho um filho de 23 anos que trabalha à noite e às vezes nos desencontrávamos... Passamos a conversar mais, o que foi um presente."