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Preconceito no tratamento de varíola dos macacos: 'Acham que é vírus gay'

José Diego Cotrim foi diagosticado com varíola dos macacos em julho - arquivo pessoal
José Diego Cotrim foi diagosticado com varíola dos macacos em julho Imagem: arquivo pessoal

Lucas Castilho

Colaboração para Universa, de São Paulo

23/08/2022 04h00

No final de julho, José Diego Cotrim acordou com muitas bolinhas e a região da virilha toda inchada. Preocupado, foi a um pronto-socorro privado. 'Quando falei que meu namorado estava com os mesmos sintomas, o médico logo cravou que eu estava com herpes e pediu exames de ISTs, mesmo eu afirmando que tinha feito todos recentemente", conta o administrador de 24 anos.

Ele, que depois disso foi diagnosticado com o monkeypox vírus, a varíola dos macacos, por um outro médico infectologista, afirma que sofreu homofobia por parte do profissional de saúde. "Eu senti, sim, preconceito", relatou a Universa. José, então, resolveu fazer um vídeo no TikTok contando a experiência dele no consultório. Com mais de 121 mil visualizações, o desabafo é um dos vídeos brasileiros sobre o tema mais vistos na plataforma.

"Os médicos não estão preparados e a sociedade ainda não tem informações suficientes sobre a doença, os casos só sobem e as pessoas acham que é um vírus gay. Não é", diz.

Durante os últimos dias, Universa coletou depoimentos de homens afetados pela varíola dos macacos que se declaram gays ou bissexuais. Eles foram unânimes: a maioria das unidades de saúde no Brasil não está preparada para lidar com o surto - e com pessoas LGBTQIA+.

Falta de atendimento mais humanizado

O amazonense Bruno Santos Onipotente, de 30 anos, também criticou o despreparo generalizado na rede privada de saúde para lidar tanto com o surto de varíola dos macacos quanto com pessoas LGBTQIA+. "O sistema privado não está capacitado. E eu falo isso por experiência própria porque fui primeiro em uma clínica particular. Nessas emergências, ninguém tem um protocolo para ser seguido: dos recepcionistas até os clínicos", conta.

Bruno critica o despreparo generalizado na rede privada de saúde para lidar tanto com o surto de varíola dos macacos quanto com pessoas LGBTQIA+.  - arquivo pessoal - arquivo pessoal
Bruno critica o despreparo generalizado na rede privada de saúde para lidar tanto com o surto de varíola dos macacos quanto com pessoas LGBTQIA+.
Imagem: arquivo pessoal

Para ele, que é gay e foi diagnosticado com o vírus no fim do mês passado e teve sintomas considerados leves, falta um olhar mais humanizado desses profissionais, mais cuidadoso. Além de um protocolo para lidar com a doença.

"Eu só fui ter um atendimento adequado quando procurei o Centro de Referência e Treinamento DST/Aids-SP (CRT). Lá eles me atenderam prontamente e fizeram todo um protocolo de isolamento", disse.

"É como ter cacos de vidro na boca e alguém apertando com alicate"

Em uma viagem para Paris com a família, o advogado João Pinheiro, de 31 anos, começou a se sentir muito cansado. Inicialmente achou ser por conta do calor excessivo que fazia nos lugares por onde passou. Mas, na sequência, percebeu também uma pequena afta na região da boca.

Como os sintomas não passaram, quando chegou no Brasil foi atrás de atendimento médico particular e não deu outra: fez o exame e foi diagnosticado com a doença. Diferentemente dos outros homens entrevistados por Universa, João não sentiu preconceito, desde o início afirma que foi muito bem tratado. Porém, quando a lesão do lábio cresceu e a dor ficou forte demais, sentiu ter sido de certa forma negligenciado pela primeira médica que atendeu ele.

Contamido com varíola dos macados, João ouviu da médica que tinha que 'aguentar a dor' - arquivo pessoal - arquivo pessoal
Contamido com varíola dos macados, João ouviu da médica que tinha que 'aguentar a dor'
Imagem: arquivo pessoal

"Ela disse que eu ia ter que aguentar a dor. Mas é uma dor que você fica descompensado, perde o juízo das coisas? Não consegue ficar triste, feliz, você só pensa nela. É como ter cacos de vidro na boca e alguém apertando com alicate", disse.

Por conta de todo esse sofrimento, João precisou ser internado no Hospital Albert Einstein: "Foi aí que a minha qualidade de vida melhorou um pouco porque antes estava insuportável", afirma.

Segundo ele, que se identifica como bissexual, apesar da experiência "positiva" no tratamento contra a doença, já passou por situações nas quais sentiu homofobia do corpo médico. "Infelizmente, a população LGBTQIA+ já está acostumada a chegar com esse tipo de receio quando vai passar por uma consulta médica", conta.

Tratar sem estigmatizar

Se no início do surto da varíola dos macacos vírus parecia que os casos se espalhavam de forma igual na sociedade, hoje já é comprovado que as ocorrências por enquanto estão concentradas entre homens gays e bissexuais.

Uma recente pesquisa, feita por especialistas da Universidade Queen Mary de Londres, comprova esse padrão. Foram avaliados 528 casos de varíola dos macacos que ocorreram entre abril e junho em 16 países diferentes. Os números mostram que 98% dos pacientes se identificaram como gays ou bissexuais.

"É importante a gente não estigmatizar e dizer que é um problema exclusivo da população LGBTQIA+, mas não podemos ignorar os fatos e dados científicos de que é um surto que neste momento está acontecendo majoritariamente na população de homens que fazem sexo com homens", diz Victor Passarelli, médico infectologista e dono da página no Instagram Foca no Infecto.

O especialista afirma que é essencial fazer uma comunicação voltada para toda a sociedade, mas priorizar homens gays e bissexuais nessas orientações e em uma eventual campanha de vacinação, por exemplo. E, acima de tudo, fazer um atendimento sem moralismo, da forma mais objetiva possível.

"A gente precisa direcionar as informações para os grupos mais vulneráveis e conversar sem tabu, mas, novamente, é importante frisar que a Monkeypox não é um vírus que apenas afeta homens que fazem sexo com homens, inclusive já existem casos em mulheres, crianças e até bichos de estimação", finaliza o médico.