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Um trans, outro cis: casal viraliza falando sobre relacionamento nas redes

Pedro pede Paulo em casamento - Divulgação
Pedro pede Paulo em casamento Imagem: Divulgação

Felippe Canale

Colaboração para Universa

07/11/2021 04h00

Paulo Vaz, investigador da Polícia Civil, e Pedro HMC, digital influencer, têm 36 anos, moram em São Paulo e formam o casal à frente do Põe na Roda, um dos maiores canais LGBTQIA+ do YouTube, com mais de 1,2 milhão de seguidores. Paulo, um homem trans, e Pedro, um homem cis, compartilham detalhes de sua vida juntos e temas relacionados à identidade de gênero e orientação sexual.

Casados no civil há três anos, os dois se conheceram em 2018, durante uma gravação para o canal. "Havia três homens trans, um gay, um hétero e um bissexual, sendo entrevistados em um vídeo. O Paulo era o gay e desde a primeira vez que a gente se viu, ficou uma tensão no ar. Alguns encontros e gravações depois, acabamos ficando e estamos juntos até hoje", lembra Pedro, satisfeito com o feedback positivo que recebe de muitas pessoas "descobrindo" que orientação sexual e identidade de gênero são coisas diferentes.

"Ficamos felizes ao receber mensagens de seguidores dizendo que entenderam que uma pessoa cis e uma pessoa trans podem se relacionar e que isso não muda nada na orientação sexual de cada um. Isso deveria ser ensinado nas escolas, pois ajudaria a quebrar o preconceito."

Os dois afirmam que ter se casado no civil foi um ato político. "Isso é fazer valer os direitos que foram conquistados com muita dificuldade, ainda mais em um país onde tudo que conquistamos em relação a direitos LGBT foi via judiciário, jurisprudências, decisões do STF e não via legislativo, que é o que seria ideal e mais seguro."

Transição de gênero

"Eu me descobri como um homem trans aos 25 anos, no final da faculdade, mas só me 'revelei' ao mundo aos 30 anos. Eu tive sorte, pois a minha família foi maravilhosa, meus pais sempre foram muito abertos para diversas questões, pois leem muito e sempre me deixaram livre para interagir com o mundo da forma que eu bem entendesse", conta Paulo.

Comecei a tomar hormônio [testosterona] aos 30 anos, mesma idade em que fiz a retirada das mamas. No meu caso, o processo foi feito pela via particular, o que costuma ser mais rápido do que o SUS, onde a fila de espera pode demorar bastante.

"Procurei ajuda de um psicólogo, pois eu estava em um momento da vida em que eu precisava disso. Muitas pessoas pensam que pelo fato de você ser trans obrigatoriamente terá de fazer terapia, mas não é assim que funciona. O que pode tornar essa ajuda profissional necessária é o quanto a pessoa trans sabe lidar ou não com todos os preconceitos da sociedade à sua volta."

Põe na Roda - Divulgação - Divulgação
Pedro HMC, digital influencer, e Paulo Vaz, investigador da Polícia Civil de São Paulo
Imagem: Divulgação

Diversidade dentro das corporações públicas

"Curiosamente eu prestei concurso para investigador da Polícia Civil de São Paulo ainda no gênero feminino, e depois tive de pedir alteração para o gênero masculino quando fui chamado para me apresentar para a vaga. Felizmente, não tive nenhum problema com isso e retificaram todos os documentos necessários", diz Paulo.

A importância que LGBTs ocupem espaços é enorme, não só na esfera da segurança pública, mas em todos os lugares. Precisamos de juízes, advogados, pessoas na imprensa, na área da saúde, da educação e muito mais.

"Nas redes sociais consigo fazer algo que eu não tive, que é servir de inspiração para quem é trans e está buscando a sua identidade. Demorei muito para transicionar e entender quem eu era de fato na vida, justamente pela falta de referência até saber que homens trans existem e cair a ficha de que sou um."

Põe na Roda - Divulgação - Divulgação
Paulo Vaz: 'A transição de gênero não está vinculada a hormônios ou cirurgias'
Imagem: Divulgação

Grupo de apoio

Paulo frequenta um grupo chamado Renosp —Rede Nacional de Operadores de Segurança Pública LGBTQIA+— que reúne os profissionais abertamente LGBT da área de segurança pública no Brasil. "Isso nos encoraja e nos une, além de dar força para que muitos saiam do armário. E mostra para a corporação que há pessoas LGBT ali e não são poucas."

Uma pessoa LGBT na polícia pode, por exemplo, ensinar outros policiais o que é homofobia, o que é transfobia e, principalmente, que isso é crime. Eu mesmo já cheguei a ensinar outros policiais a como tratar uma pessoa trans na delegacia.

"Ainda falta muito conhecimento para as gerações mais antigas, mas felizmente as turmas mais novas já aprendem estes conceitos na formação da Academia de Polícia de São Paulo (Acadepol)."

Leia trechos da entrevista com o casal a seguir.

Como é o seu relacionamento com o Pedro?
Paulo - A gente tem um relacionamento baseado em diálogo, sinceridade e companheirismo, o que acho essencial. Eu já havia ficado com homens gays cis no passado, mas o Pedro foi o primeiro com quem eu namorei e, agora, estou casado. A minha vida antes da hormonização era completamente diferente de hoje. Na adolescência, fiquei com meninos e meninas, mas só me sentia atraído por mulheres e namorei com sete. Depois da testosterona comecei a sentir atração por homens e, desde então, somente homens. Por quê? Não faço ideia. O que importa é ser feliz e não se reprimir.

O Põe na Roda é um canal LGBT e mesmo assim ainda recebe comentários transfóbicos. Por que você acha que isso ainda acontece?
Paulo - As informações sobre a existência de pessoas trans no Brasil são algo relativamente novo e, por isso mesmo, ainda precisamos falar muito sobre o tema até que seja naturalizado. Já recebi muitas mensagens de homens cis gays falando que nunca imaginaram gostar de homens trans até começarem a nos acompanhar nas redes sociais. Os novinhos de hoje, pessoas com menos de 25 anos, já estão bem à frente e se permitindo mais experiências. Um ponto interessante é que as pessoas precisam desvincular genitais e gênero. A mente se expande e entendemos que o mundo oferece uma diversidade sexual muito maior do que imaginamos.

Que conselho você daria para uma pessoa que está pensando em passar por uma transição de gênero?
Paulo - Saiba que a transição de gênero não está vinculada a hormônios ou cirurgias. Existem homens trans, por exemplo, que se hormonizam e mantêm os seios. Já outros, que não se hormonizam, mas retiram os seios. Há várias possibilidades e todas devem ser respeitadas. Sinta-se confortável com o que o agrada e com o que você se identifica. Outro ponto importante é buscar apoio, seja de familiares ou de amigos, ou também de um psicólogo, caso você precise. Por fim, saiba que a sua felicidade não está vinculada a nenhuma outra pessoa, então não deixe de fazer nada para agradar aos outros.

Põe na Roda - Divulgação - Divulgação
O influenciador digital Pedro HMC
Imagem: Divulgação

Você produz conteúdo LGBT desde 2014, expondo não somente a sua sexualidade, mas também abordando assuntos considerados tabus. Qual a parte positiva e a negativa disso?
Pedro - Poder inspirar pessoas e abrir algumas mentes me faz sentir muito feliz. O lado negativo é que toda exposição traz junto pessoas que vão te criticar e te julgar de maneira destrutiva. No início eu lidava muito mal com isso, mas hoje já aprendi a ser mais frio e não me importar tanto, principalmente quando a crítica é mais por maldade do que no intuito de te fazer evoluir.

Como é para um homem cis amar e ser casado com um homem trans?
Pedro - O legal e mais inesperado de quando me apaixonei pelo Paulo foi que, devido à visibilidade que temos, pudemos trazer essa discussão à tona, na prática, para muitas pessoas e até para nós mesmos. E passei a entender mais sobre transfobia, porque quando acontece com quem a gente ama, parece que fere mais na gente. Me doeu, a princípio, ver alguns comentários transfóbicos de pessoas que são da comunidade LGBT sobre o meu casamento com o Paulo. E, ao mesmo tempo, me abriu os olhos e me fez enxergar coisas que eu, como gay cis, do meu local privilegiado dentro da comunidade LGBT, não enxergava antes.

Por que as pessoas, seja da comunidade hétero ou LGBT+, ainda reproduzem tantos preconceitos?
Pedro - Acho que é porque mesmo sendo LGBT, as pessoas ainda absorvem os mesmos valores de uma sociedade heteronormativa. Então, tendem a acreditar, sem questionar, que genital define o gênero, ou que atração sexual se dá por um órgão sexual e não pela pessoa em si. E mesmo as pessoas LGBT têm dificuldade em entender isso, seja por nunca terem vivenciado uma situação como esta, ou simplesmente por não estudarem sobre o assunto. A falta de acesso à educação sexual nos reprime e também nos induz ao preconceito.