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Moradora de favela vai representar Rio em concurso de beleza trans

Miss Beleza T Rio de Janeiro, Eloa Rodrigues, posa para foto em casa - Fabiana Batista/UOL
Miss Beleza T Rio de Janeiro, Eloa Rodrigues, posa para foto em casa Imagem: Fabiana Batista/UOL

Fabiana Batista

Colaboração para Universa

31/08/2020 04h00

É no bairro do Jardim Catarina, em São Gonçalo, no Rio, que mora a Miss Beleza T Rio de Janeiro Eloa Rodrigues, 27. A modelo e atriz vai participar da segunda edição do concurso nacional, prevista para outubro, em São Paulo.

Em conversa com Universa, no quintal arborizado da casa em que mora com a tia, Eloa conta que está ansiosa e vê no disputa nacional uma oportunidade de mudar de vida. "Mas também de levantar a pauta da negritude em um espaço que geralmente não ocupamos", acrescenta.

"Tem dias em que eu me pergunto: vou me tornar estatística?"

Criada pela tia e pela avó, Eloa cresceu na cidade de São Gonçalo, região metropolitana do Rio. Apesar de uma infância de amizades com primos e amigos na vizinhança, relata que o bairro é violento para pessoas trans. "É um lugar de pessoas culturalmente ativas, tenho amigos dançarinos, músicos e atores, mas não é fácil viver aqui. Tem dias em que me pergunto: será que vou me tornar estatística?"

Eloa Rodrigues - Fabiana Batista/UOL - Fabiana Batista/UOL
Imagem: Fabiana Batista/UOL

Muito desse sentimento vem da tristeza que viveu depois do assassinato de uma amiga. "O caso da Camila me chocou. Ela era uma mulher trans preta e foi brutalmente assassinada aqui, por motivações claramente transfóbicas. O Brasil é o país que mais nos mata, e situações como essa me fazem lembrar que a transfobia não escolhe quem vai atingir. Eu posso ser a próxima."

Além da violência do bairro, Eloa diz que não se sente acolhida pela família. "Apesar da mudança estética, as pessoas relembram o tempo todo uma pessoa que não existe e já deslegitimaram minha existência de diferentes formas", relata. Um desses casos ocorreu durante uma festa de família. "Uma pessoa fez questão de me tratar no masculino. Senti que essa era uma forma de demonstrar que não aceita minha existência."

"Meu pai esperava que eu fosse jogar bola com ele"

De infância simples e brincadeiras na rua, Eloa lembra que brincava de bonecas com as amigas escondida do pai. Um dia, porém, foi surpreendida por ele. "Eu e minhas amigas brincávamos de boneca escondidas, e ficávamos em alerta para caso meu pai aparecesse. Uma vez ele se aproximou do muro baixo sem que víssemos, eu apanhei até chegar em casa."

"Eu era filha única, e meu pai esperava que eu fosse jogar bola com ele", conta. Mas, desde cedo, ela sabia que não seria esse tipo de criança e, com o passar do tempo, esse fato começou a se tornar um problema para ele. A modelo relata que as brigas e castigos eram constantes, "sobretudo pelo meu comportamento e por ser quem eu sou. "A primeira vez que o enfrentei foi aos 17 anos, em uma briga por causa de uns posters de uma banda que ele falou que era de viado. Ele me bateu muito. Depois daquilo, não nos falamos mais."

Apesar da falta de acolhimento paterna e da parte de alguns parentes, Eloa conta que a tia foi aliada em momentos importantes de sua vida. Emocionada, lembra da conversa que elas tiveram sobre sua identidade: "Sentei com ela e falei 'Tia, eu sou uma mulher'. Ela sorriu e respondeu que tudo bem. Acolheu minhas escolhas, e sempre se preocupou com meu futuro."

Na infância, a dupla tia e sobrinha iam aos domingos para um campo próximo de onde moravam. "Minha tia levava um rádio para lá e a gente dançava axé o dia todo, eu adorava, porque sempre gostei de aparecer e performar. Mas as pessoas me olhavam com preconceito e não foram poucas as vezes em que ouvi 'Esse aí é bicha'. Mas minha tia sempre esteve comigo para me proteger."

"Eu consigo olhar para o espelho e reconhecer minha existência"

eloa no quintal - Fabiana Batista/UOL - Fabiana Batista/UOL
Imagem: Fabiana Batista/UOL

Além trabalho como atriz no curta "Saudade de Amélia", que estreou no Cine Odeon em 2019, Eloa é modelo em lojas de marcas de roupa e estuda ciências sociais na Universidade Federal Fluminense (UFF).

"Sempre compreendi meu papel como uma figura politizada, mas a faculdade foi um divisor de águas na minha vida. Viajei para encontros de mulheres negras, como o Festival de Latinidades [no DF], em 2017, que foi fundamental para que eu conhecesse mulheres negras de realidades diferentes da minha, e aprendi muito."

A miss pretende impressionar os jurados na edição do Miss Beleza T Brasil este ano. "Estou preparando uma oratória que impressione e conquiste os jurados", conta. E reconhece a importância de sua participação enquanto uma mulher negra em um concurso de beleza nacional.

"Ser uma mulher trans negra é enfrentar o triplo preconceito enraizado da nossa sociedade, e lutar diariamente para permanecer viva. Ter a possibilidade de me tornar uma referência de beleza para outras trans é muito significativo para mim. No início da minha transição, uma prima falou que eu nunca seria uma mulher como ela, e hoje eu consigo olhar para o espelho e reconhecer minha existência. Quero que outras meninas possam sentir o mesmo."

Segundo a organização da edição nacional do concurso, em razão da pandemia "serão tomadas todas as precauções, tais como higienização dos ambientes e uso obrigatório de álcool e máscaras", e não haverá bilheteria.