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Facebook lança cartilha para empresas evitarem estereótipos na publicidade

A família de comercial de margarina não é a única no mundo. Por que não pensar diferente?  - Getty Images/iStockphoto
A família de comercial de margarina não é a única no mundo. Por que não pensar diferente? Imagem: Getty Images/iStockphoto

Matheus Pichonelli

Colaboração para Universa

02/09/2019 04h00

Ao chegar ao shopping, sorrindo e abarrotadas de sacolas, as amigas mal conseguem se controlar diante de uma promoção. Frenéticas, elas experimentam as roupas, para desespero dos maridos, que querem sair correndo de lá ou temem pelo estouro do cartão — algo que não acontece quando eles aparecem pagando a conta ou negociando com gerentes de banco ou fundos de investimento.

Quando retratados na função de pai, os homens tornam-se heróis em atividades extraordinárias. As mães, por sua vez, são quase sempre apresentadas como esposas perfeitas, que cuidam dos filhos e da higiene da casa ou assumem milhares de tarefas em um deslocamento contínuo do trabalho para a academia, da academia para a escola das crianças, da escola para o jantar com o marido. Elas quase sempre são brancas, magras, com cabelos lisos ou com cachos hidratados, sem rugas ou espinhas.

As cenas são exemplos de alguns dos estereótipos mais comuns da publicidade na América Latina, e foram objeto de análise de um estudo feito pelo Facebook em parceria com a 65 I 10, consultoria especializada em comunicação com mulheres.

A pesquisa "Dados, Diversidade e Representação" mapeou os 33 estereótipos mais comuns de gênero, raça, corpo, classe e sexualidade, além de dados e cases que mostram por que evitá-los é bom para os negócios e a sociedade.

Nesse levantamento figuram personagens como a mãe/esposa perfeita, a supermulher, o corpo perfeito, a consumidora impulsiva e incapaz de lidar com dinheiro. Aparecem também o superpai branco e provedor, os negros raivosos, subalternos e hipersexualizados, os gays promíscuos, o gordo engraçado, a idosa gentil e a pessoa com deficiência que é sempre retratada como modelo da superação.

Violência simbólica

Em uma época em que governantes decidem o que é de bom gosto, e barram propagandas de instituições públicas, como a do Banco do Brasil, com pessoas diversas por supostamente afrontarem os valores da família, a pesquisa se propõe a contestar o padrão recorrente da publicidade. Segundo o estudo, "o apagamento ou a representação estereotipada de um grupo de pessoas é uma violência simbólica". Dessa violência, analisa o estudo, decorrem as tentativas de corrigir quem não atende aos padrões e, em um último estágio, as agressões físicas direcionadas àqueles que fogem as normas.

O levantamento dialoga com uma série de trabalhos similares que apontam que apenas 1% das propagandas é protagonizado por pessoas com corpo gordo, conforme mostrou a pesquisa "Todx - 6ª onda", divulgada pela Heads Brasil em 2018. A mesma pesquisa mostrou que 45% dos protagonistas têm corpo definido e musculoso.

Segundo o Facebook, a ideia é que os estereótipos possam ser substituídos por retratos mais realistas. Um exemplo, segundo uma pesquisa realizada em 2016 e usada como base, é que 58% das mulheres decidem o modelo, a marca e a cor do carro. Ainda assim, 85% dos anúncios do setor automobilístico são protagonizados por homens.

Um caso bem-sucedido citado pelo estudo é uma marca de jipe que decidiu navegar contra a corrente e colocar mulheres ao volante em uma propaganda. A peça explorava o espírito aventureiro entre meninos e meninas desde infância, e registrou seis pontos adicionais de lembrança de anúncio na categoria feminina e três pontos a mais de crescimento em conversões — quando a campanha atinge o resultado esperado — desde que foi lançada.

Outro exemplo é uma campanha sobre cuidados com os filhos feita por uma empresa de produtos de higiene e que foi direcionada a homens e mulheres. O aumento nas vendas foi de 9,2%.

Busca por representatividade

O estudo do Facebook foi lançado há algumas semanas durante o Women Leadership Day, um evento só para as líderes de agências, e está sendo apresentado agora em eventos do Facebook para o mercado.

"As reações que tivemos no evento, quando o projeto foi lançado, foram tipo 'vou imprimir e colar nas salas de reunião da agência'", conta a consultora Thais Fabris, da 65 I 10.

Além dela, o time de que participou do trabalho foi composto por Aline Ramos, expert em raça, Clariza Rosa, expert em classes sociais, Anna Castanha, expert em sexualidade, Flávia Durante, expert em corpo, e outras duas experts em diversidade na comunicação, uma da Argentina (Bárbara Duhau) e outra do México (Ingrid Rodea).

Elas se reuniram em junho do ano passado e desenharam quais eram os estereótipos mais comuns da publicidade e quais deveriam ser as ações do Facebook sobre eles. Fabris conta que, durante o trabalho, o grupo encontrou dificuldades, inclusive, para encontrar propaganda de certos grupos sociais, como indígenas. "Eles são tão invisibilizados que temos poucos exemplos. Então nos baseamos em estereótipos comuns na comunicação em geral, mas que podem ser observados na publicidade também".

A partir daí, foram desenvolvidas e lançadas ferramentas idealizadas no workshop. Uma delas é a Last5Ads, ferramenta gratuita que permite às empresas informar quem foram as protagonistas de seus últimos cinco anúncios e comparar a representatividade da marca com os dados sobre a população (real) brasileira, para que nas próximas campanhas possam focar a mensagem em grupos subrepresentados.

Segundo a gerente de marketing science do Facebook no Brasil, Isabela Aggiunti, a pesquisa aconteceu após a companhia analisar uma série de campanhas veiculadas na plataforma e perceber o chamado viés inconsciente da indústria na tomada de decisões em termos de representação.

"Nossa conclusão é que precisávamos tornar conscientes os vieses inconscientes por meio de dados", explica.

Mas, segundo Aggiunti, mesmo com as decisões de ampliar a diversidade das campanhas, as marcas ainda corriam o risco de errar, caso usassem os estereótipos errados para se comunicar. Foi aí que o Facebook resolveu chamar o time de consultoras para fazer essa discussão a partir de diversos anúncios veiculados naquela rede social em agosto de 2018. A ideia é que as empresas, antes da ação, tivessem em mãos um "check list desestereotipador", diz a executiva.

Como resultado, algumas empresas puderam acompanhar o impacto da campanha em testes feitos em conjunto com o Facebook que analisavam a interação do público com os anúncios mais diversos. "Quando a mulher se viu representada, vimos resultados incrementais na visita ao site", conta.

Aggiunti afirma que essa análise é ainda um primeiro passo, já que temas como inclusão e diversidade ainda têm a ver com a composição do time das marcas. "Mas é um bom ponto de partida. O Facebook é uma plataforma que quer conectar pessoas. Se a gente não representa bem essas pessoas, não existe conexão.

Thais Fabris lembra que as redes sociais foram fundamentais para a força que os movimentos igualitários ganharam nos últimos anos, já que propiciaram encontros, debate e organização. "É nelas que surge a demanda dos consumidores por uma nova representatividade e é através delas que eles comunicam essa demanda às marcas. Por isso, é natural que venha do Facebook a iniciativa de ajudar o mercado a agir contra os estereótipos e por uma publicidade mais representativa", diz.

Conheça alguns dos estereótipos mais comuns na publicidade

A mãe/esposa perfeita

Como são os anúncios?

  • As propagandas de brinquedos como bonecas, panelinhas e casinhas são direcionadas exclusivamente para meninas
  • Quem fala sobre limpeza e cuidado com a família é a mulher
  • Maternidade e casamento são retratados de maneira idealizada, deixando claro que são experiências que dão sentido para a vida
  • Ela falha quando não deixa o vidro brilhante ou a roupa do filho limpíssima

Por que fazer diferente?

  • A abordagem reforça a ideia de que o papel principal da mulher está no ambiente doméstico, do qual elas são as principais responsáveis. Isso imita as mulheres e fazem com que elas sofram com sobrecarga de trabalho

A Super-mulher

Como são os anúncios?

  • Elas aparecem correndo do trabalho de casa para a academia, da academia para buscar criança na escola, da escola para jantar com o marido
  • Nunca dão sinais de cansaço ou insatisfação
  • A capacidade de fazer múltiplas tarefas é sinônimo de sucesso

Por que fazer diferente?

  • Segundo o estudo, esse retrato parece celebrar a liberdade das mulheres, mas na verdade propaga a ideia de acumulação de papéis, exime os homens das responsabilidades com os filhos e a casa e reforça a pressão para que sejam mães e profissionais sempre perfeitas

Corpo perfeito

Como são os anúncios?

  • Nesse tipo de abordagem as mulheres são quase sempre brancas, com cabelos lisos e hidratados ou com cachos definidos, cintura fina, sem rugas ou espinhas

Por que fazer diferente?

  • A abordagem ajuda a criar uma legião de mulheres insatisfeitas e frustradas com seus corpos, além de invisibilizar as que estão fora do padrão. Segundo a pesquisa Todx 6ª Onda, 92% das mulheres já deixaram de realizar alguma tarefa porque não estavam satisfeitas com sua aparência em um país onde 56,9% das brasileiras estão acima do peso (IBGE)

A mulher que não sabe lidar com dinheiro

Como são os anúncios?

  • As mulheres, cercadas de amigas, aparecem sorridentes, cheias de sacolas e frenéticas diante de descontos imperdíveis. São impulsivas, estouram o cartão de crédito ou escondem compras dos maridos. Anúncios de bancos ou fundos de investimento quase nunca são direcionados para mulheres

Por que fazer diferente?

  • A propaganda retrata a compulsão por compras como algo "incontrolável", enquanto o mundo dos investimentos e da economia é quase sempre inacessível a elas. Isso não condiz com estudos que mostram que empresas lideradas por CEOs mulheres lucram 21% a mais que a média (McKinsey, 2018)

O Superpai

Como são os anúncios?

  • Toda vez que o homem aparece realizando tarefas domésticas, isso é digo de espanto ou elogios
  • Os afazeres parecem um favor às mães, que parecem indefesas e precisam ser resgatadas nas mais diversas situações

Por que fazer diferente?

  • Esse retrato leva a crer que a divisão justa do trabalho não é normal. E ignora que existem hoje no Brasil 5,5 milhões de crianças sem o pai no registro, segundo o Conselho Nacional de Justiça, e que, em dez anos, um milhão de novas famílias com mães solo foram formadas (IBGE)

A máquina de sexo

Como são os anúncios?

  • Desodorante, carro, roupa: tudo ajuda o homem na sedução, e levam as mulheres a caírem, literalmente, a seus pés

Por que fazer diferente?

  • O retrato produz uma desconexão de sentimentos e pressiona os homens a estarem sempre dispostos a sexo

A mulher negra agressiva

Como são os anúncios?

  • Maioria no Brasil, mas não na publicidade, pessoas negras são vítimas de estereótipos quando mostrados como mulheres "barraqueiras" e que nunca choram

Por que fazer diferente?

  • Quando a mulher fala da dor, é taxada como agressiva e tem o direito à raiva negado

O negro subalterno ou hipersexualizado

  • Quando a mulher fala da dor, é taxada como agressiva e tem o direito à raiva negado

Como são os anúncios?

  • Mesmo quando pessoas negras estão em cena, são as questões dos patrões, quase sempre brancos, o centro das atenções. Como se fossem inferiores por natureza, os corpos negros aparecem como objetos de tentação, da "cor do pecado", ou em situação de miséria ou doença à espera da salvação

Por que fazer diferente?

  • Segundo as consultoras, as heranças da escravidão fazem com que as mulheres negras sejam vistas como disponíveis aos desejos proibidos e aos caprichos das pessoas brancas. Já a hiperssexualização se refere a um corpo malicioso, "proibido" - uma visão, portanto, estereotipada e ofensiva.

O asiático nerd

Como são os anúncios?

  • Os asiáticos são quase sempre uma "minoria modelo" na propaganda, que os motram como geeks, inovadores, incansáveis e estudiosos

Por que fazer diferente?

  • Isso reforça padrões de performance que podem levar a pessoa a adoecer de tanto trabalhar para atingir o desempenho esperado

Casais lésbicas e hiperssexualizadas

Como são os anúncios?

  • As mulheres lésbicas são aventureiras, curiosas, e nunca aparecem em atividades triviais, como tomando café ou em ambiente familiar. São descoladas, entediadas e precisam experimentar novas experiências

Por que fazer diferente?

  • O retrato serve para realizar fantasias masculinas, e endossam a ideia de que famílias formadas por duas mulheres não sejam válidas ou só existem porque não encontraram o "homem certo"
  • Detalhe é que pessoas LGBT aparecem em apenas 0,33% das campanhas, segundo a Todx 6ª Onda

O homem gay promíscuo

Como são os anúncios?

  • Ele nunca namora, vive em festas, desdenha relacionamentos estáveis e está sempre pronto para fazer sexo. Não tem pais, filhos ou marido. É chamado de "desperdício" quando é muito bonito

Por que fazer diferente?

  • O discurso marca a comunidade LGBT, associada a perversão, e impede avanços em temas como adoção e casamento gay

A superação da pessoa com deficiência

Como são os anúncios?

  • Aparecem apenas em épocas específicas, como as Paralimpíadas. As narrativas penosas ganham reviravoltas emocionantes. Não há momentos simples, como tomar uma cerveja com amigos de vez em quando.

Por que fazer diferente?

  • O discurso endossa a ideia de que a deficiência é um fardo e relega as narrativas apenas ao tema da superação.

O gordo engraçado

Como são os anúncios?

  • A única cena em que se enquadra são as situações constrangedoras por causa do corpo e de alívio cômico em cenas em que não são protagonistas

Por que fazer diferente?

  • O retrato gera incômodo e ansiedade, como se ele não tivesse direito a existir se não se comportar exatamente daquela maneira

A velhinha gentil

Como são os anúncios?

  • Ela é dócil, bondosa, faz tudo pelos familiares e espalha amor e sabedoria

Por que fazer diferente?

  • Ainda são raras as narrativas com pessoas idosas no centro da história, com vontade própria e formas menos padronizadas de envelhecer