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Matheus Pichonelli

Haverá Pantanal quando remake da novela for exibido?

Cristiana Oliveira é Juma Marruá, em "Pantanal" - Divulgação
Cristiana Oliveira é Juma Marruá, em "Pantanal" Imagem: Divulgação

Colunista do UOL

17/09/2020 04h00

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Os roteiristas do remake da novela "Pantanal" terão um concorrente macabro quando começarem a situar a trama no Brasil atual.

Se na versão original, nos anos 1990, a produção flertava com o realismo mágico, agora competirá com o delírio da experiência de coisas assustadoramente reais.

Nas redes, um dos assuntos mais falados desde o começo do mês, quando a TV Globo anunciou os planos para a nova versão, foi quem será a herdeira de Cristiana Oliveira no papel de Juma Marruá.

Entre memes com cobras e paisagens exóticas, o Pantanal, real, agonizava.

Não sou daqueles que veem nos sucessos de público uma ferramenta de alienação. Não acho que novela, reality show ou futebol sejam ópio do povo nem que a vida seja curta o suficiente pra focar apenas entre o pão ou o circo, o sono ou os livros "com muitas coisas escritas".

Como mostrou Mônica Manir em um reportagem recente do TAB, a novela "Pantanal" foi mais do que um produto raso de entretenimento no Brasil de 30 anos atrás. Foi o retrato de um país que se redemocratizava, se reinterpretava e enfrentava as primeiras contingências dos anos Collor —ao mesmo tempo em que organizava a Rio-92.

Entre aquele país emergente e o de agora, tanta coisa mudou que, na avaliação de Laura Graziela Gomes, professora de antropologia da Universidade Federal Fluminense ouvida na reportagem, não haverá engajamento com o público se a nova versão de Juma Marruá for apenas uma moça bonita que toma banho nua no rio, se apaixona pelo menino da cidade grande e vira onça de vez em quando.

Esse engajamento terá mais chance de acontecer se a personagem ressurgir como ativista das causas igualitárias, femininas, indígenas e ambientais.

Se já estivesse no ar, a alegoria de uma possível guerreira pantaneira, mais ou menos como Chadwick Boseman fez com seu Pantera Negra, poderia levar um país inteiro a se conectar com uma região do país que hoje agoniza sob a gestão de Ricardo Salles, ministro do Meio Ambiente que, no auge de uma pandemia, queria aproveitar as atenções do país no combate à covid-19 para passar a boiada nas florestas e nas leis ambientais.

Como se aprendesse a lição, o mesmo ministro debochou de seus seguidores com uma postagem, no domingo, desejando bom domingo e passando literalmente num carro de boi enquanto parte do Pantanal era destruída por uma série de incêndios —criminosos, segundo os primeiros indícios de uma operação da Polícia Federal no local.

"As queimadas começaram em fazendas da região, em espaços inóspitos dentro das fazendas, onde não há nada perto, o que nos faz entender que não pode ser acidente. Teoricamente, alguém foi lá para isso [colocar fogo]", disse o delegado Alan Givigi em entrevista ao Estado de S. Paulo.

A investigação identificou que quase 25 mil hectares dos cerca de 815 mil do Pantanal já foram devastados pelo fogo somente em 2020. É muita coisa, mesmo com toda a competência e disposição do governo em debelar o incêndio com gasolina e armas, como as apreendidas em um dos alvos da operação.

Um dos lugares mais afetados é o Parque Estadual Encontro das Águas, uma das maiores reservas de onças pintadas do mundo. Estima-se que 85% do santuário foi consumido pelas chamas.

Como diria o chefe do ministro do Meio Ambiente, e daí?

Segundo a BBC, o número de multas contra infratores aplicadas pelo Ibama caiu no Mato Grosso e no Mato Grosso do Sul, onde fica a maior parte do bioma no momento em que, segundo o Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), os incêndios na região cresceram 210% em relação ao mesmo período de 2019.

Salles afirma que a culpa é dos governos anteriores, que roubaram e não deixaram dinheiro para evitar o estouro da boiada que ele tanto defende.

O vice-presidente, general Hamilton Mourão, acusa a divulgação de números negativos sobre queimadas a um "opositor" instalado no Inpe.

E Jair Bolsonaro age constrangendo servidores, ativistas e cortando verbas do Ibama e do ICMBio, órgãos fundamentais para coibir crimes ambientais no país, para 2021.

Se quiser concorrer com o roteiro macabro da realidade em que será refilmada, a trama terá muitas candidatas para uma só heroína no remake da novela "Pantanal".

Mas talvez não haja tantos atores à altura para tantos vilões oferecidos pela realidade.

A versão 2021 de um sucesso dos anos 1990 será bem-vinda e tem tudo para colocar uma região inteira no centro dos holofotes e debates de um país inteiro.

O risco é não haver mais Pantanal até lá.