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Matheus Pichonelli

Após Marielle, elas foram à luta por espaço político. A semente virou filme

Cena do filme "Sementes - Mulheres Pretas no Poder" - Reprodução/Embaúba Filmes
Cena do filme "Sementes - Mulheres Pretas no Poder" Imagem: Reprodução/Embaúba Filmes

Colunista do UOL

14/09/2020 04h00

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"Você tem convite?"

A pergunta é ouvida em sequência por Talíria Petrone ao acessar a galeria da Câmara na cerimônia de diplomação dos deputados eleitos em 2018.

Com um sorriso, ela responde mais de uma vez: "Não, sou deputada eleita".

Registrada no filme "Sementes - Mulheres Pretas no Poder", de Éthel Oliveira e Júlia Mariano, a cena denuncia o estranhamento provocado pelas cores da professora e ativista, da pele ao vestido policromático, em um espaço tão branco quanto sisudo como o Congresso.

Disponível gratuitamente no site e na página no YouTube da distribuidora Embaúba Filmes até 30 de setembro, o documentário acompanha a trajetória de seis candidatas mulheres, todas elas negras, na disputa por espaços na Câmara dos Deputados e na Assembleia Legislativa do Rio. Três delas foram eleitas: Talíria Petrone (federal), Renata Souza e Mônica Francisco (estadual). Todas pelo PSOL, o que faz o documentário se desenvolver, em alguns momentos, como peça de propaganda partidária.

O partido, fundado na luta contra as desigualdades, não é o único que entendeu o vácuo da subrepresentação das mulheres, sobretudo mulheres negras, no Congresso. Mas era ao PSOL que estava filiada a vereadora Marielle Franco quando, ao lado do motorista Anderson Gomes, foi assassinada a tiros, sete meses antes da eleição, em uma emboscada no Rio de Janeiro.

Mais do que a legenda, é Marielle quem liga as candidatas numa mesma pauta de campanha, feita quase artesanalmente.

Naquele ano, a bancada feminina na Alerj passou de oito deputadas para 12. Na Câmara, de 77 para 103 dos 513 deputados —aumento de 50%. Não é pouco, embora seja ainda insuficiente.

A chegada dessas mulheres ao Parlamento acontece entre dois eventos traumáticos. O assassinato de uma liderança feminina negra e a consagração do populismo de direita encarnado por Jair Bolsonaro.

Nas roupas das personagens do filme é possível ver estampado o slogan #EleNão, evento marcante na campanha de 2018. O resultado do movimento é um livro em aberto. Da mesma forma com que potencializou as candidaturas de pessoas como Talíria, ele provocou uma reação quase imediata de grupos conservadores. Marielle elegeu as amigas, mas o ódio a ela elegeu também dois deputados que rasgaram uma placa em sua homenagem no Rio. Como?

No posfácio da nova edição de seu livro "Ressentimento", lançado recentemente pela Boitempo, Maria Rita Kehl analisa por que, em vez de barrar a emergência de Jair Bolsonaro, a mobilização contra o capitão provocou um efeito imediato oposto, levando a uma votação maior do que o esperado. "Teria a potência feminina nas ruas despertado ressentimentos antediluvianos entre os machistas até então resignados com as novas regras de convívio com as mulheres?", questiona.

Movida pelo ressentimento de quem rejeita a liberdade e a autossuficiência feminina que transbordavam nas ruas, parte dos eleitores se sentiu, segundo a autora, recompensada pelo revival das atitudes retrógradas ostentadas e moralmente autorizadas pelas primeiras medidas do novo governo.

"Por razões diferentes, alguns brutamontes também devem ter se alegrado com a expectativa da expansão do direito ao porte de armas —talvez a única proposta que se possa atribuir genuinamente a Jair Bolsonaro", escreve Kehl, para quem o "ressentimento venceu aquilo que, algum dia, foram nossas melhores esperanças".

Entender este fenômeno requer entender o arquétipo do homem ressentido encarnado por Bolsonaro. Em um dos capítulos do livro, a psicanalista analisa Paulo Honório, personagem de Graciliano Ramos no livro "São Bernardo" —tema de uma coluna recente publicada na Folha de S.Paulo do escritor Sergio Rodrigues, para quem o personagem-narrador da história é precursor do bolsonarismo.

Fazendeiro, Honório é levado à tragédia por não admitir ter se casado com uma mulher a quem só o casamento não satisfaz.

Como lembra a autora, Madalena enfrenta o marido, questiona seus métodos, discorda abertamente da violência com que trata os empregados. A certa altura, o marido, desconfiado dos silêncios da personagem, sentencia: "Mulher sem religião é capaz de tudo". Uma mulher intelectual, para o narrador, não era digna, afinal, de confiança.

O ressentimento do personagem, escreve Maria Rita Kehl, é sintoma da decadência de um modo autoritário e brutal de dominação que começava a ser moralmente desbancado pela democratização tardia da sociedade rural brasileira.

Esse modo de dominação não foi totalmente vencido, e o Brasil de 2020 está aí para provar.

Só que este país está repleto de Madalenas e Marielles. E de Marias, Mahins e malês, como cantou a Mangueira em 2019. Uma das sementes desta mobilização é a determinação de uma cota financeira para candidatos negros para as eleições já deste ano.

Em São Paulo, por exemplo, já tem diretório municipal, como o do PDT, que além de um dispositivo de equidade prevê adicional de 20% no financiamento de candidaturas de mulheres negras e 10% para homens negros. Um avanço entre tantos retrocessos.

Volto ao filme. Para desconfiados de toda ordem, a posição declarada das diretoras pode servir como trava à força do documentário como registro histórico.

Ainda assim, fica difícil não se arrepiar quando, ao saber que foi eleita, Renata Souza, ex-chefe de gabinete de Marielle, corre para abraçar a mãe, que em uma cena anterior relembrava: "A Marielle era nossa companheira aqui em casa. A campanha dela foi toda feita aqui. E acabou dando no que deu. Aí eu tenho muito medo pela minha filha, mas acredito muito nela".

Existem duas formas de contar a história de Marielle. Uma delas acaba no dia 14 de março de 2018, quando foi assassinada. A outra começa no dia seguinte. E não acaba na apuração das urnas.