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Isabela Del Monde

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Mesmo com caso Melhem 'arquivado', Globo deve amparar quem relatou assédio

Marcius Melhem se defende após ser acusado de censurar revista - Divulgação / Globo / Tata Barreto
Marcius Melhem se defende após ser acusado de censurar revista Imagem: Divulgação / Globo / Tata Barreto

Colunista do UOL

20/01/2022 04h00

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Além de advogada, sou consultora em diversidade e prevenção e tratamento de assédio e discriminações em empresas e demais organizações. Um trabalho que realizo com muita alegria ao lado das minhas sócias Manuela, Thayná e Adriana na Gema Consultoria em Equidade.

Por causa disso, trabalho cotidianamente com relatos de condutas inadequadas que acontecem em ambientes de trabalho, como os que foram feitos perante o compliance da Globo contra Marcius Melhem, de assédio sexual e moral.

Como repercutido pelo colunista Ricardo Feltrin em Splash, a emissora arquivou as denúncias por não conseguir confirmar a autenticidade dos relatos das pessoas que se apresentaram como alvo das condutas investigadas. Muita gente pode estar se perguntando: e agora?

Antes de tudo, é importante frisar que eu acredito que a apuração de relatos de assédio deve ser baseada em três grandes pilares. O primeiro deles é a centralidade da pessoa relatante. Deve haver um diálogo constante sobre os receios de quem se apresenta como vítima, com objetido de acolher e escutar com qualidade quem tem a coragem de reportar uma violência.

O segundo é a fundamentação contra traumas, ou seja, quem apura denúncias de assédio tem que ter conhecimento técnico de como o trauma causado por uma conduta sexual inadequada ou ilegal provoca reações involuntárias no cérebro da vítima, bem como pode alterar sua capacidade de se lembrar de todos os detalhes do que aconteceu.

Já acompanhei casos em que as vítimas foram tratadas como mentirosas apenas porque pediram para serem ouvidas novamente, ou porque se lembraram de mais aspectos ou porque queriam corrigir uma informação inicial.

Além disso, esse pilar é essencial para evitar que, ao longo da apuração, as relatantes sejam, novamente, expostas a situações de violência que causam revitimização e responsabilização das próprias pessoas atingidas pela conduta inadequada.

Por fim, o terceiro pilar é a imparcialidade e a equidade. Isso significa garantir que todas as pessoas envolvidas no caso em investigação sejam tratadas da mesma forma sob as mesmas regras, independentemente de quem sejam.

E, claro, qualquer pessoa que atue nesses casos precisa ter conhecimento sobre como opera a estrutura social do machismo e seus reflexos, como a cultura do estupro. Não é possível apurar um caso de assédio sem levar em consideração esses elementos e as estatísticas.

Não posso afirmar se a Globo seguiu ou não essa linha metodológica nem quais foram os critérios que a levaram a crer que não havia como confirmar as denúncias. O que sabemos é que provar violações sexuais pode ser mesmo muito difícil porque tendem a acontecer sem testemunhas e muitas vezes não deixam provas nem vestígios.

É preciso conhecimento técnico em violências sexuais para atuar em casos como esse, justamente porque são altas as chances de arquivamento por impossibilidade de comprovação.

Como Melhem já está fora da emissora, o arquivamento do caso não tem implicações práticas na sua relação com a TV, mas certamente será utilizado pela sua defesa judicial como argumento de que as vítimas estão mentindo, o que não tem relação direta.

O arquivamento também não impede que a empresa ofereça apoio às vítimas, em um reconhecimento de que, mesmo sem provas suficientes, não signifique que a violação não ocorreu. Espero que elas estejam amparadas com todos os recursos possíveis, como, por exemplo, atendimento psicológico.

E, independentemente do resultado da apuração, esse tipo de caso sempre oferece uma possibilidade de melhoria para as organizações.

A pergunta a ser feita dentro da empresa é: o que nós podemos melhorar ou mudar aqui dentro para evitar que isso volte a se repetir? Os relatos de pessoas que se apresentam como atingidas por uma violação são de extrema valia justamente por, entre outras coisas, abrirem caminhos para a prevenção de outros incidentes.

Nosso ambiente é aliado de violadores ou de violadas? Temos paridade de gênero e raça nas posições de liderança? Temos políticas institucionais de prevenção e tratamento de assédios e discriminações? Nossa equipe de apuração está tecnicamente formada para acolher casos assim? A liderança está apta para dar providências a relatos?

Essas são apenas algumas das perguntas que situações como essa podem provocar em organizações que estejam verdadeiramente dispostas a se tornarem seguras para todas as pessoas. Independentemente de um arquivamento ou não.