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Isabela Del Monde

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Criar o Dia da Conscientização dos Riscos do Aborto é constranger a mulher

Ato de movimento feminista para a legalização do aborto em São Paulo - Alice Vergueiro - 08.dez.2016/Folhapress
Ato de movimento feminista para a legalização do aborto em São Paulo Imagem: Alice Vergueiro - 08.dez.2016/Folhapress

Colunista de Universa

07/04/2021 04h00

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Vamos imaginar a seguinte situação: você trabalha em uma empresa que existe há 16 anos e que estava bem e consolidada no mercado, gerando renda e emprego, mas que de um ano para cá passou a enfrentar, de forma inesperada, uma grande crise que tem espalhado seus efeitos no equilíbrio emocional da equipe devido a perdas financeiras, ao medo do desemprego, transformando ambiente de trabalho em um espaço hostil e agressivo.

E diante desse cenário de crise e caos, imagine que a liderança da empresa, ao invés de criar e implementar um plano de contingência com objetivo de aplacar a crise e aliviar seus efeitos perante a equipe e a cadeia de fornecedores, volta suas preocupações e ações para criar o código de vestimenta da empresa.

Não te parece, no mínimo, estranho que, diante de uma grande crise que coloca renda, emprego e saúde em risco, a escolha da liderança seja com um assunto sem qualquer relevância para enfrentar o problema? Você não ficaria com nenhuma suspeita de que se trata de uma forma de desviar a atenção quanto às responsabilidades da liderança pela crise e sua solução? Você não estaria já buscando outro emprego?

Pois bem, é isso que está acontecendo no Brasil com o governo de Jair Bolsonaro (sem partido), com o acréscimo dos números mórbidos que o acompanham. Já morreram mais de 337 mil pessoas de covid-19 porque a liderança está empenhada em fazer tudo, mas tudo mesmo, desde que não seja resolver a causa dos nossos problemas agudos do momento.

E a bola da vez, causando nenhuma surpresa, é novamente uma tentativa de constranger mulheres que exercem seus direitos reprodutivos. Depois do populista Estatuto da Gestante, temos agora em consulta pública a minuta de Projeto de Lei que institui o Dia Nacional do Nascituro e de Conscientização sobre os Riscos do Aborto, de autoria de ninguém mais, ninguém menos que o ministro da Casa Civil, Luiz Eduardo Ramos.

A Casa Civil tem como responsabilidade principal assistir diretamente a Presidência no desempenho de suas atribuições, como, por exemplo, na coordenação e no acompanhamento da formulação de projetos e políticas públicas.

E agora eu indago: como a criação do Dia Nacional do Nascituro e de Conscientização sobre os Riscos do Aborto, a ser celebrado em 8 de outubro, nos ajuda a sair da maior pandemia dos últimos cem anos, a realizar vacinação em massa, a gerar emprego e renda, a apoiar mulheres vítimas do aumento escandaloso da violência doméstica no último ano e a sermos um país novamente respeitado pela comunidade internacional?

A resposta, para mim é evidente, não ajuda em nada. Esse tipo de iniciativa parece ter dois grandes objetivos. O primeiro, como falei, é desviar a atenção da população quanto à responsabilidade do governo no enfrentamento à crise. O segundo é usar essa crise, artificialmente dilatada pela omissão da Presidência e seus ministérios, que têm deixado, por exemplo, as ruas vazias no exercício da cidadania em protestos e manifestações, para seguir com o avanço de pautas ultraconservadoras.

O único motivo do aborto ser tão arriscado no Brasil é justamente o fato de ele ser ilegal. Como qualquer outro procedimento médico-hospitalar, desde tirar uma pinta até mesmo ser submetida a uma cirurgia, o aborto tem riscos. Mas a ciência já sabe quais eles são, como evitá-los e tratá-los.

A OMS (Organização Mundial da Saúde) tem, inclusive, uma publicação intitulada de "Abortamento seguro: orientação técnica e de políticas para sistema de saúde" para apoiar países na implementação de políticas públicas que garantam o pleno exercício de nossos direitos reprodutivos da forma mais digna e menos arriscada possível.

Para exemplificar como essa linha argumentativa dos riscos do aborto é moralista, sexista e hipócrita, pergunto por que o governo Bolsonaro não torna crime a realização de lipoaspiração, já que é uma cirurgia eletiva, de alto risco e com mortes em números significativos? É justamente porque o risco não é a preocupação dele, porque se fosse, bastava legalizar o aborto como ele já o é em diversos outros países.

Em um país sustentado no Estado Democrático de Direito, deveríamos ter um dia de "Conscientização sobre os Riscos da Gestação Forçada", como tortura, por exemplo, quando falamos de gestações em crianças. Fica essa minha sugestão para a consulta pública promovida pela Casa Civil sobre o assunto.