Topo

Opinião: Prefiro pessoas da internet do que a minha família

Getty Images
Imagem: Getty Images

Era minha primeira viagem por conta própria. Meus pais, preocupados com o risco de algum estranho roubar meus rins, pediram todos os números de telefone possíveis e tentaram me impedir, mas nada me impediria de embarcar naquela noite. Eu faria a distante --para os padrões de um moleque de 15 anos-- travessia entre a pequena Pato Branco, no interior do Paraná, e a cidade de São Paulo.

O motivo? Encontrar pessoas da internet. Maluquice total. Claro que eu sentia medo, mas muito mais da viagem em si, da novidade de conhecer uma cidade grande, do que dos riscos de conhecer aquelas pessoas que eu nunca tinha visto antes. Afinal, eu conversava com eles por horas todos os dias, e eram as pessoas mais próximas que eu tinha --ainda que estivessem a 850 km de distância.

Não sei se eu fui bom de lábia ou se eu era um adolescente tão irritante que meus pais queriam se ver livres de mim de uma vez (o conselho da minha mãe de caminhar até estranhos e pedir doces para eles deveria ter me alertado disso), mas eu fui. Voltei para Pato Branco com os rins intactos e várias histórias para contar.

--

A internet facilitou muito a vida de quem, como eu, não tem muito traquejo social. Ficou mais fácil encontrar pessoas com interesses similares e, com a convivência protegida pelas telas (que não deixam passar mau hálito e podem disfarçar um péssimo senso de estilo), é possível deixar uma amizade aparecer aos poucos onde ela não teria tanta chance de outra forma.

A comunicação virtual também se popularizou a ponto de tornar a distância irrelevante. Não há mais muita diferença entre um amigo que mora a duas quadras da sua casa e um que mora a milhões de quilômetros. A maior parte da comunicação é feita via WhatsApp, mesmo. Que diferença faz onde seu amigo está, se ele está no seu bolso?

Você não pode abraçar a pessoa, mas pode enviar um emoji que deixa a sua intenção muito bem desenhada.

--

Julia, 30 anos, tem muito mais amigos virtualmente do que em pessoa. Seus hobbies, de assistir dramas coreanos obscuros e jogar RPGs online, não se prestam muito a fazer amizades pelas ruas de sua cidade.

Aliás, eu mesmo sou um de seus amigos virtuais. Nós nos conhecemos há pelo menos 12 anos, em um fórum, e nunca nos vimos em pessoa. Ainda assim, conversamos quase todo dia.

Até o casamento vindouro de Julia começou pela internet. Ela conheceu Michel numa partida de MMORPG (um tipo de jogo online que vai ofender seus participantes se for descrito de um jeito simplório, e que vai confundir as pessoas que nunca jogaram se for descrito do jeito correto). Quando conversaram pela primeira vez, ela estava em um relacionamento à moda antiga, desses em que você conhece a pessoa fisicamente.

“Eu não tinha nenhuma intenção de me envolver com ninguém, mas terminei meu relacionamento e acabei me aproximando mais dele. Começamos a conversar todos os dias, desde a hora em que ele chegava do trabalho até a hora de ir dormir.”

A amizade foi se aprofundando: “O que era só assunto de jogo passou para interesses em comum: filmes, séries de TV, livros, histórias sobre nossa adolescência". 

Detalhe: em todo esse tempo de conversa, eles nem sequer tinham visto uma foto um do outro. Depois de quatro anos conversando sem imagens, finalmente trocaram fotos, conversaram por vídeo e decidiram começar a namorar --sem nunca terem trocado um beijo.

Os 890 km que separam os dois só foram cruzados quando, meses depois, Michel foi conhecer os pais da namorada. Ah, sim, e a namorada também. “No começo foi estranho”, diz Julia, “mas duas horas depois parecia que a gente se conhecia a vida inteira.”

Mais um ano se passou e Julia e Michel vão se casar no final desse ano.

O casamento vai ser um encontro de pessoas que se conheceram pela internet: a madrinha é, também, uma amiga virtual de Julia, que nunca viu o noivo pessoalmente. Como Michel ainda não encontrou um emprego na cidade de Julia, o casamento vai permanecer virtual por um tempo. Isso não parece ser um desafio muito grande para os dois --a distância parece estar no DNA de sua relação.

--

Quase tudo o que eu sou hoje --mesmo as partes que quem me conhece casualmente, sem interação virtual nenhuma-- vem de características moldadas e aprimoradas nas minhas amizades encontradas pela internet.

De que outras maneiras eu ia encontrar tantas pessoas que, assim como eu, gostavam de músicas esquisitas e livros obscuros, tendo nascido numa parte esquecida do mapa do Paraná Muitas das minhas amizades que começaram na internet são pessoas que eu converso mais, encontro mais frequentemente e me conhecem melhor do que gente da minha própria família.

Até nos meus atendimentos como psicólogo, trabalho em que é essencial ser capaz de desenvolver relações abertas e acolhedoras com as pessoas, tenho tido cada vez mais sessões online.

Esse texto, mesmo, foi escrito de uma casa de praia alugada via um aplicativo de internet, para uma coluna publicada na internet, editada por um jornalista que eu nunca vi pessoalmente e que conheceu meu trabalho por indicação de uma amiga que eu conheci pela internet.

Não há mais limites entre a vida atrás da tela e longe dela.

--

Dá para argumentar que, sob a luz azul de uma tela de computador, você não conhece a pessoa que está conversando contigo, que você pode estar conversando com um personagem o tempo todo, que a pessoa pode estar te enganando.

Mas, quem tiver uma maneira cem por cento garantida de conhecer gente em pessoa, tendo plena certeza de que o outro não está fazendo um personagem nem nunca vai te enganar… Por favor, me informe.

Enquanto essa maneira não aparece, sigo adicionando amigos internet adentro.