Enxergar o navio negreiro de perto

Fernando Holiday | Por Guilherme Tagiaroli, de Tilt

O exame de DNA se popularizou. Mais barato e fácil de fazer, ele virou uma importante ferramenta para resgatar a ancestralidade negra do povo brasileiro. Tilt propôs, e 20 personalidades toparam fazer o teste e olhar para essa cicatriz histórica gerada pela escravidão no Brasil (veja abaixo). Se você quer entender o papel da ferramenta genética e como o Estado brasileiro moeu memórias, leia o texto "Quando o DNA diz de onde vim", que dá início ao projeto documental Origens. Agora, é hora de elas contarem o que descobriram e de onde vieram. Com a palavra, Fernando Holiday:

Minha reflexão sobre o processo de escravidão agora ganha um novo patamar, porque, de certa forma, tem a ver comigo. Antes era um negócio dos livros de História. Esse tipo de coisa ajuda você a tomar consciência do seu papel na sociedade"

Este é um capítulo da série

Origens

Quem não sabe de onde veio não sabe para onde vai?

As primeiras dúvidas de Fernando Holiday (sem partido-SP) sobre a própria origem surgiram na adolescência, mas não havia para quem perguntar. O pai abandonou a família e a mãe não era muito de falar do assunto. Os parentes, muito idosos, tinham dificuldades para lembrar. O pouco que Fernando Silva Bispo (nome de batismo do político) sabia era que a avó da avó havia sido escravizada. Ouviu que uma bisavó era branca. Do lado do pai, então, só sabia que eram todos negros de Vitória da Conquista (BA). O resto era palpite.

A participação do vereador paulista, de 24 anos, no projeto "Origens" fez cair alguma fichas. Conhecido por seu posicionamento de direita e contra ações afirmativas, como as cotas raciais, ele diz que o resultado do teste de DNA o ajudou a ter uma consciência diferente sobre a sua ancestralidade: entendeu que está diretamente ligado a homens e mulheres que foram violentamente retirados de seus países e trazidos à força para o Brasil.

"Gosto de falar do passado, não à toa estudei história, mas sempre foi um mistério na minha família, não há nenhum registro. Conversava com a minha avó, porque ela é uma das poucas que ainda tem alguma lembrança dos nossos antepassados, só que a memória dela já é um pouco falha."

A percepção da falta de conhecimento da própria origem ganhou força nos anos de escola. Ao conviver com pessoas brancas de classe média, notou que, ao contrário dele, quase todos sabiam de onde vinham e a história da família. Muitos conheciam e até há haviam visitado a cidade natal dos pais e dos avós.

Agora ligue o som, no canto superior direito.

Você vai perceber, ao longo do projeto, que isso acontece algumas vezes. As pessoas "sentem" de onde vieram. A família do Holiday suspeitava de que eles tinham alguma ligação com Angola, algo que era atribuído a uma certa semelhança física. Era puro chute, mas foi o que o teste confirmou.

"Estou pesquisando companhias que fazem essa rota e quero ir com alguns deles [parentes]. Vai ser uma experiência emocionante, com certeza. Porque é um país pobre, mas é um país que fala nossa língua, então fica mais fácil conhecer sobre as origens."

Não é que Holiday negasse os impactos da escravidão ou sua raça, mas, depois do teste, virou algo pessoal. É como se aquele período saísse dos livros e entrasse na sua vida. É por isso que ele usa o Holocausto para exemplificar. "Eu sempre tive uma repulsa por tudo que os judeus sofreram no nazismo, mas não é algo que conversa pessoalmente com a minha história, com pessoas da minha família. É uma repulsa a um fato histórico".

"Agora consigo enxergar meus parentes sendo carregados em navios negreiros até o Brasil, uma terra absolutamente desconhecida, e escravizados de maneira desumana. Agora eu sinto como se essas pessoas fossem da minha família. Agora é absolutamente concreto."

Holiday sabia que havia alguma influência europeia na família. Por isso, temeu que o teste o mostrasse "menos negro", o que poderia ser usado contra sua figura política. Com o resultado em mãos, avaliou que isso só confirma sua origem miscigenada:

"Justamente um dos principais argumentos pelos meus posicionamentos contra cotas."

O teste mostrou 26,4% de origem na Hungria.

"Me surpreendeu tudo isso de um único país. Comecei a pesquisar, mas não acho nenhum traço de cultura húngara na minha família. Descobri que foram duas ondas de imigração e acho que esse encontro aconteceu depois da Segunda Guerra."

Para quem acha estranho seu posicionamento anticotas, Holiday diz que não nega que vivemos numa sociedade racista. Mas ele concorda com o que escreveu o sociólogo brasileiro Gilberto Freyre, autor do livro "Casa Grande e Senzala", que defende que somos um povo miscigenado, e com o economista norte-americano Thomas Sowell, que vê ações afirmativas como incapazes de solucionar desigualdades.

Aquele pouquinho de saliva coletado para fazer o exame trouxe um mapeamento profundo da sua ancestralidade e muitas portas se abriram. Mas o teste de DNA não resolveu tudo. "Vai ficar uma dúvida para o resto da minha vida: minha tataravó era nigeriana ou angolana? Quando essas pessoas chegaram? Essa linhagem da minha família começa lá no século 16 ou mais para o século 18?", explica.

"Mas foi uma experiência que vai mudar a minha vida e a vida das próximas gerações. Da minha família pelo menos, isso eu tenho certeza."

Testes de DNA:

  • Como o teste é feito: o DNA é coletado pela própria pessoa que esfrega uma haste flexível com algodão na parte de dentro da bochecha. Na sequência, este material deve ser enviado para a empresa;
  • O que o teste mostra: As empresas fornecem detalhes da ancestralidade, que pode retroceder de cinco a oito gerações, e pode mostrar a linhagem de pai e mãe ou até busca de parentes;
  • Quem oferece no Brasil: Genera, meuDNA (Mendelics) e MyHeritage;
  • Quanto custa: os testes variam de R$ 200 a R$ 500.

Publicado em 20 de abril de 2021.

Reportagem: Guilherme Tagiaroli

Coordenação e Edição: Fabiana Uchinaka e Helton Simões Gomes

Produção: Barbara Therrie

Arte: Deborah Faleiros

Fotos: Keiny Andrade

Este é um capítulo da série

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