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OPINIÃO

A mulher do fim do mundo se torna imortal

Luiz Teixeira

Colaboração para Splash, em São Paulo

20/01/2022 22h11

Não vale a pena ficar juntando coisas que você depois não vai levar daqui, porque você vai sofrer pra largar tudo isso. Esse mundo é um paraíso que, se bobear, a gente estraga. Tem que saber entrar, aproveitar e sair. Tem que passar com gentileza, cumprimentar todo. Abraçar todo mundo! Porque eu amo a humanidade. Eu faço parte dela

As palavras acima são de Elza Gomes da Conceição, a cantora brasileira do milênio. Uma mulher de mil histórias, que foi do inferno ao céu, sem nunca desistir dos sonhos, dos objetivos e das lutas, sem esquecer, é claro, das feridas causadas pelos sofrimentos do racismo estrutural, pelo machismo enraizado na nossa cultura e pelas batalhas travadas desde 23 de junho de 1930, data do seu nascimento.

Forte, determinada, apoteótica e intensa, Elza Soares, que nos deixou aos 91 anos de idade, destacava incansavelmente, por onde sua poderosa voz pudesse ser ouvida, que todo momento é sempre tempo de brilhar.

Mãe aos 13 anos e viúva aos 21, Elza teve uma vida precoce em quase todos os aspectos, sem poder reclamar ou mesmo parar para refletir cada acontecimento. Ela começou a carreira na década de 1950 e logo encantou à todos com sua voz, não só no Brasil, mas também na Argentina. Uma visita da cantora à Buenos Aires ficou marcada como a chegada do samba à capital argentina.

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Criativa e inspiradora, a Voz do Milênio, que passeou do funk ao hip hop, sem jamais esquecer a essência do samba nos 34 discos lançados, também se destacava e falava sem usar sua voz. Elza raspou o cabelo na década de 70 e adotou o black power como penteado durante a ditadura, defendendo não só a democracia, mas os direitos iguais a todos e todas.

Dona de um timbre único, Elza trouxe, na qualidade de sua voz, algo que moldou não só a sua jornada como cantora, mas também a história da música no Brasil. A música popular brasileira pós-Elza, principalmente a feminina, ganhou um novo status. Lecy's, Beth's, Alcione's, Sandra's de Sá, Ludmilla's, Iza's e Luedji's Luna são provas de inspiração e alimentação de um legado deixado pela Voz do Milênio.

O "rótulo de referência" pode até ser limitador para alguém do tamanho de Elza, mas é algo que seguirá ligado ao seu nome até a eternidade. Sua voz, e sua grandeza musical, levou não só qualidade, mas esperança para mulheres pretas e pobres de todo o país.

De Samba & Mais Sambas, de 1970, até Do Cóccix Até o Pescoço, de 2002, Elza sempre passeou entre o ritmo e a militância, numa linha tênue capaz de ser traçada apenas por ícones à frente do seu tempo.

"A Carne" é um marco na vida de Elza, mas a interprete de "A Bossa Negra", de 1960, é muito mais do que uma simples música ou um hit de sucesso. Expor que a carne negra é a mais barata do mercado racista de uma sociedade preconceituosa é um grito de desespero em forma de canção, mas "Planeta Fome" e "Deus é mulher" são outros dois exemplos de álbuns capazes de gerar uma reflexão tão profunda quando a carreira da nossa rainha.

Na cena musical, temos vários nomes de mulheres negras, inspiradas na voz e na força de Elza, como Doralyce, cantora e compositora pernambucana, que chegou a fazer uma parceria com a atriz Silvia Dufrrayerna canção "Mulheres Versão". Negra Li, com o rap e o hip hop, Gaby Amarantos, com a história nortista como essência, ou mesmo Malía, que, mesmo sendo uma jovem revelação, já teve trabalhos com Alcione e sabe bem que houve um legado construído antes mesmo dela nascer.

No livro "Elza", escrito pelo jornalista Zeca Camargo, a cantora usou o exemplo da escrava Anastácia, sentenciada a utilizar a máscara de flandres pelo resto de sua vida, retirando-a apenas para se alimentar e figura quase mitológica para ela, para dizer que jamais se calaria, mesmo estando amordaçada pelo sistema.

Na obra, Elza pediu para o jornalista colocar o grito dela pra fora, eternizando cada frase da cantora do milênio nas páginas da biografia dela.

Elza também foi uma grande voz fora dos palcos. Política e dona de uma personalidade forte, a cantora recebeu, em 2019, o título de Doutora Honoris Causa, em lembrança a sua trajetória marcada pela resistência.

"Honoris Causa pela arte, pela contribuição à cultura brasileira, mas Honoris Causa pela posição corajosa, incisiva, intransigente na superação do racismo e no combate à perseguição das mulheres negras no Brasil", diz o texto da Universidade do Rio Grande do Sul.

E por falar em combate ao preconceito, no episódio de estreia do Podcast Pretoteca, da Rádio BandNews FM, Elza, ao falar do primeiro encontro dela com o racismo, destacou uma passagem da infância para relatar que conviveu com o preconceito durante toda a sua vida.

"Quando minha mãe ia lavar roupa e eu entregar uva, com 5 ou 6 anos de idade, eu já sentia essa diferente e lá eu já sabia o que era o racismo."

Luiz Teixeira é repórter da Globo e dono da página Universo do Samba - Reprodução/Instagram - Reprodução/Instagram
Luiz Teixeira é repórter da Globo e dono da página Universo do Samba
Imagem: Reprodução/Instagram

Representante de uma resistência que fica ainda mais forte, Elza morreu no mesmo dia que o ex-jogador Garrincha, seu ex-marido e muitas vezes citado por ela como o grande amor que ela teve em vida (no programa do Bial, por exemplo). Não podemos esquecer que a relação entre eles ficou marcada por agressões do Mané, que era alcoólatra e também tinha um histórico de traições durante o relacionamento com a cantora.

Ferida física e sentimentalmente, Elza mostrou ser dona de uma concentração extraordinária de energia e de um talento enraizado no organismo da cultura brasileira. Ela é aquela que ousou nos deixar 39 anos após o passamento de Mané Garrincha. Como pode alguém morrer no mesmo dia do seu amor?

Elza, nesse momento, descansa uma voz. A mulher do fim do mundo, nome dado ao último álbum lançada pela cantora, agora passa ser também imortal em seu legado infinito deixado para todos nós.

Feita a vontade de Elza Soares, ela cantou até o fim.