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O cinema é o novo disco de vinil

Lembra disso? É um cinema - Divulgação
Lembra disso? É um cinema Imagem: Divulgação

Rodrigo Salem

Colaboração para Splash, de Los Angeles

05/12/2020 04h00

Após meses de incerteza durante a pandemia, o futuro dos cinemas parece um pouco mais visível. Visível, mas não promissor.

Na quinta (03), a Warnermedia anunciou que todos os seus filmes de 2021 serão lançados simultaneamente nos cinemas e no seu serviço de streaming HBO Max, começando pela sequência "Mulher-Maravilha 1984", em 25 de dezembro. Os longas ficarão disponíveis de graça por 30 dias para o assinante do serviço, ao mesmo tempo em que estarão nos cinemas —onde houver permissão para abrirem.

Inicialmente, a decisão afeta apenas os Estados Unidos, único país que tem HBO Max no momento. O serviço se expandirá em 2021, com a possível chegada ao Brasil no segundo semestre do próximo ano. Internacionalmente, a Warner continuará a mandar os filmes para os cinemas, sem um espelhamento online simultâneo.

Mulher-Maravilha 1984 - Twitter/Reprodução - Twitter/Reprodução
Gal Gadot com o figurino de "Mulher-Maravilha 1984"
Imagem: Twitter/Reprodução

Mas é bom lembrar que os EUA representam o mercado mais lucrativo da indústria ao lado da China. Ou seja, a bomba jogada pela Warner tem efeitos estratosféricos. Não estamos falando de obras que só preencheriam as salas sem repercussões. São blockbusters com potencial de gerar bilhões em bilheteria global e com orçamentos acima dos US$ 100 milhões.

O espectador poderá escolher se verá longas como "Duna", "O Esquadrão Suicida", "Godzilla vs. Kong", "In the Heights", "Matrix 4", "Mortal Kombat", "The Many Saints of Newark" (prólogo de "A Família Soprano") e "Invocação do Mal 3" em casa ou no cinema, no mesmo dia de lançamento.

Duna - Reprodução/IMDB - Reprodução/IMDB
Jason Momoa em cena de 'Duna'
Imagem: Reprodução/IMDB

A decisão chega algumas semanas depois de a Universal chegar a um acordo com as duas maiores redes de cinema dos EUA para diminuir a janela de exibição para três semanas. A Warner foi mais radical. A janela foi quebrada.

Precisamos de dois pontos de vista sobre esse anúncio histórico. O primeiro é sob a perspectiva da HBO Max/Warner. Depois de um lançamento pífio e confuso (HBO Max é HBO, HBO GO ou HBO Now, ou diferente? Se assino um serviço, preciso assinar outro? Quais são os exclusivos?) que culminou com a demissão de vários executivos da empresa, a Time Warner Inc., que foi comprada pela poderosa empresa de telefonia AT&T, em 2018, decidiu que era hora de mostrar suas armas mais poderosas e elevar o app para outro patamar.

Obviamente que não foi uma decisão fácil. Mas jogar um ano de lançamentos nos cinemas mostra que a empresa tem acessos a evidências concretas de que o mercado norte-americano não vai voltar tão depressa ao normal, mesmo com a iminente chegada das vacinas contra a Covid-19. Grandes empresas de entretenimento planejam a volta aos escritórios apenas para depois do verão de 2021. Os cinemas não voltarão à capacidade normal tão cedo e o fracasso de "Tenet" nos EUA provou que boa parte da população não está propensa a arriscar a vida para ver um filme.

HBO Max vs. Netflix e Disney+

Godzilla Vs. Kong - Reprodução - Reprodução
Imagem oficial de "Godzilla vs. Kong"
Imagem: Reprodução

Em vez de ficar ruminando em datas que mudam todos os meses, a Warner preferiu assumir o prejuízo e ter algo em retorno: a consolidação da HBO Max como um adversário digno da Netflix e Disney+, algo que não parecia possível sem um investimento criativo ainda maior. Tanto que a Netflix chegou a oferecer US$ 200 milhões para tirar "Godzilla Vs. Kong" das mãos da Warner, mas o estúdio vetou a venda para o concorrente e colocou o filme nesta lista do HBO Max de lançamentos simultâneos, ou "híbridos", como a Warner apelidou.

Lembra do MP3?

Não se enganem. A tática não é apenas necessária, mas brilhante. Fortalecer o streaming é pensar no futuro que já chegou. Foi uma atitude mais sensata do que a da indústria fonográfica, quando surgiu o MP3 e as gravadoras ficaram mais preocupadas em processar adolescentes do que em abraçar a tecnologia que iria dominar a música para os anos seguintes —perderam anos e milhões de dólares na brincadeira.

E assim chegamos ao segundo ponto de vista: o dos exibidores. No começo da pandemia, muitos tentavam adivinhar o que aconteceria com os cinemas. Escrevi um pouco sobre isso há alguns meses. Era muita divagação, muito achismo. A decisão da Warner —junto com a da Universal— deixa o caminho um pouco mais claro. E o futuro parece bem escuro para o cinema tradicional.

Sem grandes filmes, não há cinema. A empresa diz que é um plano temporário e emergencial. Balela. Esses lançamentos nas salas de exibição só atraem milhões de pessoas porque não há outra alternativa, principalmente para os mais jovens, que nasceram com uma telinha na frente dos olhos. Se você agora tem a escolha de ver o filme em casa, assistir na sua telona particular (você compra uma TV 4K UHD de 70 polegadas por US$ 500 ou menos nos EUA), deitadão no sofá e comendo o que quiser e, ainda por cima, de graça, por que diabos iria ao cinema?

Passo sem volta

Uma vez ou outra, tudo bem. Mas um ano disso? A Warner está dando um passo sem volta e com consequências. Você não alimenta uma criança por um ano com doces e espera que ela passe a comer salada para o resto da vida depois. O espectador vai se acostumar a passar um ano vendo os maiores filmes do estúdio em casa, sem precisar pagar ingresso caro para ver um longa que você nem sabe se é bom, sem enfrentar filas e pessoas mal-educadas. Ele NÃO vai voltar aos hábitos antigos. Isso é fácil de prever.

Adam Aron, CEO da rede de cinemas AMC, pegou pesado ao comentar a decisão da Warner e mostra como a notícia caiu em Hollywood:

Claramente, a Warner planeja sacrificar uma parte considerável dos lucros do seu estúdio de cinema para subsidiar sua startup HBO Max. Faremos tudo ao nosso alcance para que não seja às nossas custas

A AMC, no mesmo dia do anúncio, perdeu 16% em valor de mercado, enquanto a Cinemark sofreu uma queda de 22%.

Isso não significa que é o fim dos cinemas. O cinema será o novo vinil: um produto ainda em voga, comprado por adoradores da arte, mas que não vende mais aos milhões. As salas de exibição serão locais para poucos, com ingressos mais caros e uma exigência maior do consumidor também.

O que será do multiplex?

Ironicamente, vejo um futuro mais complicado para os multiplexes do que para os poucos cinemas de rua ou "de arte" que ainda existem pelo planeta. Aposto como multiplexes de shopping vão virar lojas de roupas ou praças de alimentação em alguns anos. Filmes nos cinemas serão eventos, alguns raros para grande público e outros como plataforma de premiações. Os exibidores devem estar sofrendo neste momento. E com razão.

Mulan - Reprodução - Reprodução
Cena de "Mulan", da Disney
Imagem: Reprodução

Nenhum cinema consegue sobreviver com público reduzido e poucos filmes por dois anos seguidos. Muitos não passarão nem de 2020. A esperança deles está na Disney, mas acho que nem mesmo os exibidores contam muito com isso. A companhia do Mickey está amargando prejuízo histórico com o fechamento dos seus parques e já começou a investir no Disney+, primeiramente cobrando extra por "Mulan", mas agora lançando grandes filmes sem custos ao assinante, como "Soul".

Será que farão o mesmo com "Viúva Negra", "Os Eternos" e "Shang-Chi e a Lenda dos Dez Anéis"? É possível. E a Sony, que não tem serviço de streaming, vai fazer o que com "Venom 2" e o novo "Homem-Aranha"? Vender para o Disney+? "Venom" não se encaixa na linha do estúdio. Complicado. As próximas semanas serão decisivas.

Mas não adianta ficar chorando. A pandemia só acelerou o processo em alguns anos. Foi assim com a música e com minha profissão, o jornalismo —tente procurar uma revista de cinema hoje em dia. Pois é.

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