Thiago Stivaletti

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Por que somos todos Bebês Renas?

Há muito tempo uma série da Netflix não alcançava tanta repercussão quanto a britânica "Bebê Rena". Para quem não estava neste planeta nas últimas semanas, é a história de um comediante de stand-up, Donny Dunn (Richard Gadd), que trabalha como barman num pub em Londres. Um dia, uma mulher, Martha, entra e senta no balcão. Ela tem um ar inconsolável; ele pergunta o que ela deseja tomar. Ela diz que está sem dinheiro. Com pena, ele lhe oferece um chá por conta da casa. Encantada com essa simples acolhida, Martha fica obcecada por Donny e passa a stalkeá-lo nas redes e na vida real, com milhares de emails, comentários em seus posts nas redes sociais, ou até o seguindo pelas ruas.

Gadd e a Netflix usaram aquele velho trunfo para bombar a série: trata-se de uma história real, vivida pelo próprio Gadd, que adaptou a sua apresentação nos palcos sobre essa experiência desagradável para esta série em sete episódios. Ok, temos uma certa curiosidade por histórias reais; mas certificado de realidade não salva nenhuma história de ser chata. E, no entanto, "Bebê Rena" tem calado fundo em quem assiste. Por quê?

A chave está numa indagação simples feita por Donny no primeiro episódio. Ele diz que ficou intrigado com duas coisas: 1) Quem é Martha? 2) O que ela viu em mim? É essa segunda pergunta que o prende a uma mulher instável e perigosa, e o faz demorar a procurar a polícia. Mas será que Donny é tão maluco assim, ou essa é uma pergunta que todos nós fazemos em nossas relações afetivas, e até nas amizades mais simples? A pergunta se amplia porque, no fundo, somos todos muito inseguros com a imagem que vendemos para o mundo, e sobre como as pessoas nos veem. E não venham falar em intimidade: será que você sabe as piores coisas que seu namorado ou namorada, seu pai ou sua mãe pensam sobre você? Se a resposta for sim, é bom procurar uma terapia para curar uma grave ilusão de controle e onisciência.

Em "Bebê Rena", a pergunta é agravada pelo fato de Donny ser um comediante fracassado, carente de atenção afetiva e profissional, inseguro sobre seu talento. Como resistir a alguém que lhe dá atenção e passa o dia dizendo que te ama e te admira, ainda que você não o ame de volta? É a mesma armadilha que o faz se envolver num buraco de abuso no quarto episódio, que rendeu muito pano pra manga nas redes.

Claro, quando falo de Donny não quero dizer que temos alguém exatamente saudável na outra ponta da relação. Martha é instável, desequilibrada, extremamente obsessiva - podemos até dizer que exibe traços psicóticos, já que não enxerga nenhum obstáculo do mundo ao seu desejo insano. O stalkeamento virtual é problema contemporâneo grave, e "Bebê Rena" ajuda a mostrar que, apesar de as mulheres serem as maiores vítimas dessa perseguição, homens na aparência independentes e inatacáveis também podem sofrê-la. A, digamos assim, "diarreia mental" que Martha descarrega em seus emails até acontece no presencial, em situações descontroladas no pub em que Donny trabalha. Mas ela é bem maior na frente do notebook ou do celular, que permitem dar vazão a nossos piores impulsos "impunemente". É triste ver como ainda é difícil para Estados e governos estabelecerem leis e limites para esse mundo digital selvagem.

BEBÊ RENA
Série em sete episódios na Netflix

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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