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OPINIÃO

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Fui trombar com um calvo do campari num livro de Tolstói

O escritor Lev Tolstói. - Arquivo
O escritor Lev Tolstói. Imagem: Arquivo

Rodrigo Casarin

Colunista do UOL

03/04/2023 04h00

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"Quando as pessoas dizem que, presas do furor, não têm consciência do que fazem, é um absurdo, é mentira. Eu me lembrava de tudo, e não deixei de lembrá-lo um segundo sequer. Quanto mais fortemente eu cultivava em mim o meu furor, tanto mais nitidamente acendia-se em mim a luz da consciência, com a qual eu não podia deixar de ver o que fazia. A cada segundo, eu sabia o que estava fazendo".

Paranoico quando coloca na cabeça que é corno já vira corno na hora, independente do chifre ter lastro ou não. Às vezes penso nisso quando me lembro de Machado de Assis e seu "Dom Casmurro". O raciocínio também me veio à cabeça enquanto lia "A Sonata a Kreutzer", de Lev Tolstói, de onde retirei o trecho acima.

"A Sonata a Kreutzer" saiu no final do século 19, quando provocou gritaria e foi proibida aqui e ali. Dentre outras coisas, a literatura é ótima porque às vezes encontramos num título desses uma espécie de versão oitocentista de brucutus do século 21. Não é que lendo Tolstói fui trombar com um red pill, um machinho estúpido, uma espécie de calvo que protege seu campari das mulheres cervejeiras!? E daqueles que, feito o mal, ainda metem uma variação do "tava doidão".

É Pózdnichev, até outrora casado com uma moça mais jovem, quem passa todo o livro despejando bobagens durante uma viagem de trem. Seu foco é o comportamento sexual da sociedade. Seu alvo preferencial, claro, são as mulheres, que usariam a sensualidade como artifício para escravizar os homens. Aquelas que não tenham aversão ao sexo seriam aberrações. Caberia aos homens instruir as garotas, zelar para que não se corrompam. De ciúmes doentio e enorme desejo de controle, temia ver a esposa se aproximar de outros homens. São frágeis esses tipinhos.

"Não será tão cedo que os homens vão saber aquilo que eu sei. Pode-se adquirir depressa o conhecimento sobre o teor de ferro no sol e nas estrelas e que outros metais existem lá; mas aquilo que desmascara a nossa porcaria é difícil, tremendamente difícil?", crê Pózdnichev, como se tivesse ciência de algum grande segredo que seus brothers também deveriam conhecer.

Boris Schnaiderman, grande conhecedor da literatura russa e tradutor da edição que tenho em mãos, da 34, aponta no posfácio que o personagem não é nenhum Tolstói. Apesar disso, carrega certas visões de mundo do escritor ao expressar "todo o ressentimento do autor nesse campo, de sua raiva, do fermentar incessante do mesmo problema".

"Sonata a Kreutzer", de Beethoven, tem um papel crucial na narrativa. Excitante, na visão algo torpe de Pózdnichev, ela embala a série de eventos que levam o personagem a assassinar sua esposa. Não se preocupem, não há spoiler algum aqui. Mas há uma amostra de como o discurso obtuso e a violência contra as mulheres caminham lado a lado. É outra ponta que conecta aquela Rússia de Tolstói, do século 19, aos nossos dias.

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