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OPINIÃO

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A bolacha do Proust, a fumaça do ônibus e as arquibancadas do Morumbi

O escritor francês Marcel Proust - Arquivo
O escritor francês Marcel Proust Imagem: Arquivo

Rodrigo Casarin

Colunista do UOL

12/12/2022 04h00

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"Quando nada subsiste de um passado antigo, depois da morte dos seres, depois da destruição das coisas, solitários, mais frágeis e ainda mais vivos, mais imateriais, mais persistentes, mais fiéis, o odor e o sabor permanecem ainda por muito tempo, como almas, a recordar, a aguardar, a esperar, sobre a ruína de todo o resto, a carregar sem vergar, sobre a sua gotinha quase impalpável, o edifício imenso da lembrança".

Ninguém precisa ser grande entendedor de Marcel Proust para conhecer o papel que as madeleines (ou madalenas na nova tradução de Mario Sergio Conti que acaba de sair pela Companhia das Letras, de onde tirei o trecho acima) têm em "Para o Lado de Swann", primeiro volume do colossal "À Procura do Tempo Perdido" - e aqui sigo com os caminhos escolhidos por Conti ao verter o clássico para o português. A lembrança do sabor da bolachinha molhada no chá leva o narrador para alguns dos cantos mais remotos e enraizados de sua memória.

Minha madalena tem características muito menos apetitosas. Sequer é de comer, aliás. Mas o aroma, aspecto fundamental de qualquer boa comida, está ali. A chave para o portal memorialístico dá as caras quando estou pelas ruas em dias frios, abaixo dos 15 graus. Essa é a condição para que o cheiro da fumaça de algum caminhão ou ônibus leve de imediato a minha cabeça para o Morumbi numa boa noite de Libertadores, numa época em que a fumaça dos sinalizadores defumavam a arquibancada e nublavam a visão do campo.

Como reavivou lembranças correr recentemente pelo Morumbi. 10Km, corrida ligeira - apesar de umas subidas puxadas - que há tempos não fazia. Queria mesmo a experiência de largar e terminar na pista que contorna o gramado, olhar para arquibancadas onde vivi parte importante da juventude, revisitar os anéis do estádio, recordar o tempo em que o São Paulo me dava mais alegria do que dor de cabeça.

E as lembranças foram longe. Numa noite de Morumbi lotado, o pessoal abrindo espaço e fazendo um cadeirante flutuar sobre todos até conseguir vaga ao lado da bateria. O camarada que devolveu minha carteira depois de eu correr feito maluco para comemorar uma virada contra o Palmeiras lá pelas tantas do segundo tempo. A cabeçada de Raí para abrir o placar contra o Corinthians em 1998. Os muitos degraus de arquibancada que rolei enquanto comemorava o gol de Danilo contra o River. Os gols do Amoroso, do Fabão, do Luizão, do Tardelli. As entranhas do estádio na hora de guardar o bandeirão.

Não só. O frio de um São Paulo X Juventude jogado para quase ninguém. A expulsão do Josué. A torcida adversária explodindo enquanto o meu lado silencia diante de um maldito gol. O quase ser esmagado numa grade na entrada das oitavas contra o Nacional. A primeira briga que vi e senti. A violência da polícia que vi e senti. A ausência do César, morto por um policial antes do título de 2008.

Minhas madalenas me levam direto para a vida na arquibancada. Pouco proustiano, sei disso. Paciência.