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OPINIÃO

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O que pensar de Luísa Sonza como Clarice Lispector?

Clarice e Luísa - Reprodução
Clarice e Luísa Imagem: Reprodução

Colunista do UOL

04/08/2021 10h08

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Em 1977, Clarice Lispector conversou com o jornalista Júlio Lerner sobre diversos aspectos de sua carreira. A escritora morreu naquele mesmo ano. Pouco depois, a entrevista foi ao ar no programa "Panorama" e virou um dos principais registros históricos da autora de "A Paixão Segundo G. H.".

Num papo cadenciado, introspectivo, com momentos de silêncio e esfumaçado por cigarros, Clarice fala sobre dúvidas, dificuldades e fragilidades. Mostra-se reticente em relação à literatura, ao rótulo de hermética e comenta alguns de seus escritos. O momento em que passa pelo conto "Mineirinho" é bem marcante.

A entrevista de Clarice a Lerner serviu de inspiração para Luísa Sonza. No lyric video de "Penhasco", uma das faixas de seu álbum mais recente, "Doce 22", a cantora emula a escritora. Trejeitos, maquiagem, o olhar e até o cigarro entre os dedos da artista pop nos fazem lembrar imediatamente de Clarice. Dirigido por Felipe Gomes, cenário e fotografia também aproximam a novidade daquele papo histórico.

Alguns torceram o nariz. Pelas redes sociais, não é difícil achar quem veja o trabalho de Luísa como uma afronta à memória de Clarice. Ainda tem quem enxergue os grandes nomes da arte, especialmente da literatura, como figuras intocáveis, que precisam permanecer num pedestal elevado e jamais devem ser misturados a certas manifestações. Bobagem.

Faz bem para a literatura que haja alguma possibilidade de diálogo entre uma cantora pop contemporânea e uma figura como Clarice (que também ganhou ares pop na última década, é verdade). Da mesma forma como faz bem para a literatura que um jogador de futebol como Gustavo Scarpa compartilhe suas leituras de Kafka no Instagram chamando numa boa Gregor Samsa, protagonista de "A Metamorfose", de moleque inseto. São formas válidas e bem-vindas de se relacionar com o que encontramos nos livros e no entorno do mundo literário.

Persiste a ideia de que o universo intelectual no qual a literatura está metida é algo para poucos, para seres iluminados, um campo cercado de reverências e cerimônias. Outra tolice. A arte não pertence a meia dúzia de obtusos que alimentam tal imagem. Qualquer um pode falar sobre os livros lidos e se associar aos autores admirados (se o resultado será satisfatório é outro papo, claro). Ações como a de Luísa podem contribuir para que a literatura seja tratada de forma mais rotineira, horizontal, próxima de qualquer um que tenham paciência para sentar a bunda em algum canto e meter a cara em contos, romances, poemas, ensaios.

E deixo a dica: se alguém resolveu ler Clarice por causa do vídeo da cantora, sugiro começar por "A Hora da Estrela" ou pelos contos. "Mineirinho" é uma boa pedida.

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