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ANÁLISE

Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.

Banido do mundo, dei uma volta por Lisboa com Fernando Pessoa

Troca de ideia com Fernando Pessoa enquanto o mundo está fechado. - Arquivo
Troca de ideia com Fernando Pessoa enquanto o mundo está fechado. Imagem: Arquivo

Colunista do UOL

22/03/2021 10h07

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"Uma visita aos Jerônimos tem necessariamente de ser demorada, para ser uma verdadeira visita. Todas as belezas aqui existentes devem ser cuidadosamente examinadas: o trabalhado de todos os pormenores, as imagens, os túmulos, as colunas, as abóbadas, especialmente a do transepto, que nenhuma coluna sustenta, as pinturas, o coro, de onde pode ser vista a maior parte do interior da igreja, o claustro, que é um dos mais belos do mundo, a Sala do Capítulo, com os túmulos de Alexandre Herculano e do grande poeta Guerra Junqueiro, a antiga ala onde eram os dormitórios, a Capela de Cristo etc."

Leio que o passaporte brasileiro é o segundo com mais restrições em todo o mundo. Ninguém quer receber essa bomba de vírus antigos e novos que viramos. Previsível. Cantei essa tragédia lá em maio do ano passado, o que constato sem alegria alguma. E ainda que alguém nos quisesse, tirar dinheiro de onde? O real é a moeda que mais desvaloriza no planeta. Quando a pandemia der uma trégua, o jeito será deixar a zona norte de São Paulo para viajar até, sei lá, Osasco. Acho que caberá no bolso e ninguém me barrará na fronteira. Acho.

Pelo menos há lembranças. A última grande pernada pela vida foi para Portugal. A visita ao Mosteiro dos Jerônimos, das construções mais belas que já vi, marcou o passeio por Lisboa. Trancado e desolado em casa, voltei à cidade. Perambulei misturando memórias com Fernando Pessoa na versão guia turístico. São deles as palavras que abrem esta coluna. Hoje, o túmulo do escritor também está no mosteiro que começou a ser construído em 1501.

Em 1925, Pessoa idealizou um projeto para fazer propaganda de Portugal pelo mundo. Escrito originalmente em inglês, o guia turístico terminou na gaveta. Só foi chegar aos leitores no final do século passado, muitos anos após a morte do autor. Um box da Nova Fronteira chamado "Percurso em Prosa" traz "Lisboa - O que o Turista Deve Ver" traduzido por Maria Amélia Santos Gomes e apresentado por Monica Figueiredo. O outro volume da caixa que reúne escritos de não ficção do português é "O Poeta Para Além de Sua Poesia", com crônicas, ensaios, anotações, correspondências e afins.

Percurso em Prosa - Divulgação - Divulgação
Imagem: Divulgação

"Lisboa - O que o Turista Deve Ver" tem texto bom para guia turístico, um tanto além do que encontramos em obras similares, mas é só. Não há o gênio literário de Pessoa, que nos apresenta uma detalhada visão panorâmica da cidade e muitos dados históricos. As fotos, de épocas posteriores ao registro, ajudam a ambientar o leitor (e a me deixar com um misto de melancolia e saudosismo). Só é difícil de perdoar Pessoa por ter negligenciado a comida portuguesa. Quis deixar todo o vinho e todo o bacalhau para os seus heterônimos, camarada?

Em certo momento, o poeta escreve sobre a Casa dos Bicos. "Este edifício data do século XVI e pertenceu aos descendentes do grande Afonso de Albuquerque. A fachada é toda de pedras pontiagudas, e por essa razão costumavam chamar-lhe Casa dos Diamantes. É uma curiosidade arquitetônica que bem merece ser observada". Pessoa não tinha como imaginar, óbvio, mas muitas décadas depois a peculiar construção seria o endereço da Fundação Saramago, outro canto de Lisboa do qual tenho ótimas recordações. Quando o guia turístico foi escrito, o autor de "Ensaio Sobre a Cegueira" ainda era uma criança de três anos.

Misturando puxadas de saco, pitadas de ufanismo e detalhes saborosos aos olhos de hoje (para entrar na Tapada da Ajuda, alguém de carruagem precisava desembolsar 1 escudo; se estivesse de motociclo ou num cavalo, o valor caía para 50 centavos), os registros têm seu valor para quem quer, de alguma forma, conhecer a Lisboa da década de 1920 - alguns daqueles traços se mantêm até hoje - ou aguçar as boas lembranças deixadas pelo lugar.

Pelo andar desta carroça chamada Brasil, durante muito tempo só poderemos viajar para fora por meio dos livros, da arte e da imaginação mesmo.

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