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OPINIÃO

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Jorge Luis Borges, Yahoos e o ser primitivo que desgoverna o país

Jorge Luis Borges - Arquivo
Jorge Luis Borges Imagem: Arquivo

Colunista do UOL

17/03/2021 10h03

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David Brodie conhecia a língua portuguesa. Missionário escocês, perambulou pelo centro da África e por certas regiões "selvagens" do Brasil para entochar a sua fé cristã em outros povos. Um de seus raros registros foi encontrado num exemplar do primeiro volume de "As Mil e Uma Noites" publicado em Londres, em 1840. Por meio de seu "inglês incolor", podemos ter uma ideia do que o homem encontrou por essas bandas do mundo.

É o missionário que protagoniza "O Informe de Brodie", conto de Jorge Luis Borges que também deu nome ao livro que o argentino publicou em 1970. Ao lado de "O Livro de Areia", me parece uma boa porta de entrada para quem quer conhecer a obra do grande escritor. A edição de "O Informe de Brodie" que tenho em mãos é a publicada pela Companhia das Letras com tradução de Davi Arrigucci Jr.

Na história, Brodie se encontra com os Mlch, que prefere chamar de Yahoos para facilitar as coisas. A linguagem áspera, sem vogais, é uma das marcas desse povo. Esses primitivos arremessam lama uns nos outros para se comunicar, vivem em guerra contra os homens-macacos e são comandados por um rei com poder absoluto. Brodie, no entanto, suspeita que o líder não passa de um fantoche dos quatro feiticeiros que o elegeram e que o auxiliam. Na hora de se divertir, os Yahoos gostam de rinhas de gatos adestrados e de execuções. Após alguém ser arbitrariamente sentenciado, o condenado é torturado e apedrejado até a morte.

O Informe de Brodie - Reprodução - Reprodução
Imagem: Reprodução

Quando Brodie armou sua cabana, os Yahoos ficaram surpresos. Apesar de terem auxiliado na montagem, acreditavam que a barraca era, na verdade, uma árvore. Isso porque "são incapazes de fabricar o objeto mais simples", não são capazes de construir nada, apenas destroem. Eles também são "insensíveis à dor e ao prazer", exceto por curtirem tanto o gosto da carne crua e rançosa quanto as coisas fétidas. Não por acaso, veneram um deus chamado Esterco e imaginam o paraíso como um lugar escuro e pantanoso.

Não é difícil deduzir por que lembrava de Jair Bolsonaro conforme relia "O Informe de Brodie". O macabro foi eleito com ideias sempre expostas com esboços de linguagem e incompatíveis com qualquer tipo de civilização. Ser pintado como alguém que não governa, só fica andando pelo palácio do planalto fazendo piadas (sem graça, pelo que conhecemos) e inquirir a médica Ludhmila Hajjar, candidata ao cargo de ministra da Saúde, sobre armas e aborto são dois dos episódios mais recentes na gigantesca lista de barbaridades presidenciais.

Como Bolsonaro, os Yahoos são incapazes de entender questões minimamente complexas. "Não compreendem que um ato executado há nove meses possa guardar alguma relação com o nascimento de uma criança; não admitem uma causa tão distante e tão inverossímil". E aí mora uma diferença significativa.

Ao rejeitar o lockdown com medo de minar as chances de ser reeleito em 2022, Bolsonaro mostra que a coisa muda quando é o seu lado que está em jogo. Deixa de ser um palerma completo e passa a compreender a causa e o efeito de certas decisões. Tosco, sim, responsável por milhares de mortes, também; inconsequente ou louco sem noção de suas atitudes, jamais.

E outra. Segundo David Brodie, diferente daquele que talvez fosse um de seus membros perdido por Brasília, os Yahoos tinham algumas virtudes que poderiam lhes servir de redenção.

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