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ANÁLISE

Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.

Vender a vida ou praticar um ritual de morte inspirado em samurais?

Mishima - Arquivo
Mishima Imagem: Arquivo

Colunista do UOL

03/03/2021 10h01

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Em 1970, decepcionado com os caminhos tomados pelo Japão, Yukio Mishima liderou uma invasão golpista a um quartel de Tóquio. A ideia era iniciar a insurreição para reestabelecer poderes quase divinos ao imperador. Aquela, pensavam, seria a melhor forma de barrar a crescente influência da cultura ocidental na ilha e retornar ao tempo em que as tradições eram mesmo respeitadas (ou qualquer bobagem do tipo). Não deu certo.

Então Mishima transformou o golpe frustrado numa cena pessoalmente trágica e supostamente heroica. Um quarto daquela base militar de Tóquio virou palco de sua morte. Com uma espada na mão e a tal tradição anuviando sua cabeça, golpeou o próprio bucho com a lâmina da arma. Inspirara-se nos samurais para realizar o ritual funesto. Com um seppuku (ou harakiri, como é mais conhecido no Brasil) que o japonês deu o golpe derradeiro na própria vida.

O suicida tradicionalista tinha 45 anos quando cumpriu o que já havia, de alguma forma, projetado em "O Patriotismo", conto de 1960 que recentemente ganhou uma edição pela Autêntica, com tradução de Jefferson José Teixeira (e peça vem num box acompanhada de um longo perfil do escritor assinado por Victor Kinjo). Na história, elementos associados à obra de Mishima também aparecem, como a beleza e o sexo. A masculinidade, a homossexualidade, o militarismo e os tais valores tradicionais são outras marcas do autor de títulos como "Confissões de uma Máscara" e "Cores Proibidas".

Pelo caldo de interesses explorados na arte e em consonância com a própria vida, não é difícil de imaginar por que Mishima é frequentemente chamado de fascista. Deixo o registro mas desvio do debate, ando mais preocupado com fascistas do presente que moram aqui para esses lados do mundo.

Na década de 1960, Mishima foi apontado como candidato a levar o Nobel de literatura para o Japão. Não rolou. Em 1968, pouco antes de seu suicídio, a honraria foi pela primeira vez para a ilha. Yasunari Kawabata ficou com a distinção. Em 2019 a Estação Liberdade colocou no mercado "Kawabata-Mishima: Correspondências 1945 - 1970", reunindo trocas de mensagens dos dois escritores.

Vida à Venda - Reprodução  - Reprodução
Imagem: Reprodução

Há pouco a Estação Liberdade também lançou um romance que íntegra a fase, digamos, com menos pompa de Mishima. Traduzido por Shintaro Hayashi, "Vida à Venda" saiu primeiro como série na revista Weekly Playboy entre maio e outubro de 1968. É uma história que segue o padrão folhetinesco: bons ganchos, reviravoltas, personagens interessantes, às vezes um tanto caricatos, grande capacidade de prender o leitor.

Depois de uma tentativa frustrada de suicídio, o publicitário Hanio Yamada decide inovar. Ele anuncia no jornal: "Vendo minha vida. Use-a como quiser". É a deixa para que o homem passe a ser procurado por mafiosos, mulheres misteriosas, membros de organizações secretas, outros desesperados...

Vendendo-se para diversas missões obscuras e arriscadas, o personagem entra em contato com uma gama de tipos que articulam o corroído submundo de um Japão cada vez mais receptivo a práticas e influências - nem sempre positivas (ou quase nunca, pelo olhar do escritor) - estrangeiras. Bom entretenimento para quem lê, uma forma de colocar alguma grana no bolso para quem escreve. Mishima também precisava pagar suas contas.

Crimes, conspirações, violência, sexo e um bom tanto de dinheiro fazem parte da história de "Vida à Venda". Como o suicídio não consumado já indicara, a vida de Hanio não se vai com facilidade. Num caminho oposto ao de Mishima, o personagem, dribla mortes iminentes e começa a mudar a maneira como encara a própria presença neste mundo. De certa forma, entende o valor, inclusive financeiro, que a vida pode ter. Nota que talvez seja melhor deixar a espada longe do bucho. Dois anos depois, seu criador não interpretou a própria realidade da mesma forma.

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