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ANÁLISE

Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.

Lutar contra a ruína ou deixar o país? Dias melhores virão?

Odisseia de Hakim - Reprodução
Odisseia de Hakim Imagem: Reprodução

Colunista do UOL

15/02/2021 09h49

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No meio do ano passado, enquanto começávamos a sacar a pandemia e o abismo no qual o Brasil se arremessa, a leitura do primeiro volume de "A Odisseia de Hakim" bateu forte por aqui. Por meio do trabalho do quadrinista francês Fabien Toulmé, acompanhamos a jornada de ex-jardineiro que levava uma vida confortável na Síria, até que, a partir de 2011, a estupidez venceu, os conflitos internos se acirraram, a guerra tomou conta do país e Hakim precisou deixar família e terra natal para trás.

Restava tentar sobreviver em outro canto. "Nunca pensei que isso pudesse me acontecer. Mas me dei conta de que qualquer um pode virar um 'refugiado'. Basta que seu país desmorone. E aí, ou você desmorona junto, ou vai embora", lemos num dos momentos mais dramáticos daquele início de saga, cujo segundo volume agora chega ao Brasil pela mesma Nemo e traduzido pelo mesmo Fernando Scheibe. Se na HQ lançada no ano passado conhecemos a jornada de Hakim pela Síria, Jordânia e Turquia, agora o protagonista passa por sérios perrengues entre os turcos para depois rumar à Grécia. A chegada à França, onde Hakim vive atualmente, ainda acontecerá no volume derradeiro prometido também para este ano.

Por algum patriotismo estúpido ou por um compreensível apego à cultura do lugar onde vive, há quem vire a cara para a ideia de deixar para trás um país em evidente naufrágio. Para quem quer distância desse papo de sofrimento e redenção, a possibilidade de tentar a vida em outro lugar anda rondando os sonhos. Não que seja um movimento fácil, como o livro de Toulmé nos mostra.

Odisseia de Hakim - Reprodução - Reprodução
Imagem: Reprodução

Se no volume inaugural da série Hakim sofreu por deixar pai, mãe e irmãos para trás, agora o ex-florista segue em busca de uma cidade onde não se sinta um estranho. Onde possa trabalhar sem ser importunado. Onde as pessoas não lhe virem a cara nem tentem explorá-lo ao notar que é um homem desesperado com a própria condição.

E há mais rupturas. A esposa consegue a documentação para mudar para a França, mas Hakim segue na Turquia junto com o bebê do casal. Após trombar em diversas barreiras burocráticas, decide arriscar a própria vida e a vida do rebento na solução mais dramática: gastar o dinheiro que não tem (arruma graças à solidariedade de um colega) e se enfiar num bote junto com dezenas de outros refugiados para, durante a noite, tentar cruzar o Mediterrâneo e alcançar o território grego.

Daí que se outrora escrevi sobre como o quê de ingenuidade do estilo de Toulmé não contribuía para a dramaticidade da história, agora o efeito se inverte. O traço do artista e as cores empregadas na HQ são decisivos para que tenhamos a dimensão do desnorteio de Hakim e de outras tantas pessoas absolutamente comuns que passam por explorações, extorsões e riscos em esquemas obscuros para tentar seguir vivendo. A longa cena da travessia do Mediterrâneo é primorosa, capaz de fazer com que o leitor se imagine como um dos refugiados que apostam num bote inflável lotado para sair de um pedaço de terra e chegar a outro pedaço de terra, onde, quem sabe, dias melhores virão.

É o que também estamos precisando. Seja no Brasil mesmo, seja em algum outro canto.

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