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Guilherme Ravache

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Live de tragédia, invasão bolsonarista, BBB: Black Mirror vira realidade

Queda de avião no Nepal foi transmitida ao vivo por passageiro - HANDOUT/via REUTERS
Queda de avião no Nepal foi transmitida ao vivo por passageiro Imagem: HANDOUT/via REUTERS

Colunista do UOL

18/01/2023 04h00

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Nos últimos dias fomos surpreendidos por uma série de acontecimentos chocantes transmitidos em tempo real nas redes sociais. Da invasão de apoiadores de Bolsonaro em Brasília, ao vídeo feito por um dos passageiros da Yeti Airlines ainda dentro do avião registrando a queda da aeronave que deixou 72 mortos no Nepal, o terror ganhou cores, formas e se tornou mais real e próximo do que nunca.

A série Black Mirror estreou na TV inglesa, em 2011, com o episódio The National Anthem. O enredo do primeiro capítulo girava em torno de um primeiro-ministro britânico obrigado a fazer sexo com um porco, ao vivo, para salvar da morte uma celebridade sequestrada. A trama parecia tão ridícula que era difícil imaginar que Black Mirror iria ganhar a fama de prever o futuro.

Inclusive, quatro anos depois da estreia, quando um livro de memórias do ex-doador conservador Lord Ashcroft alegou que David Cameron colocou seu pênis na boca de um porco morto durante um bizarro ritual universitário - algo que o criador da série insiste que não tinha conhecimento - as credenciais de previsão do futuro do programa foram definitivamente seladas.

Mas se Black Mirror (em tradução livre espelho negro, uma alusão à tela negra dos equipamentos eletrônicos) se tornou icônica graças a sua visão cínica e ultra-negativa do futuro da mídia e da tecnologia, também se tornou profética. Porém, em um mundo cada vez mais digital e hiperconectado com lives constantes e cada vez mais pessoas nas redes, chegamos ao ponto em que a realidade superou a ficção (alerta de spoiler a seguir).

Radicalismo, um mergulho sem volta

No episódio Nosedive, um dos mais populares da série, as pessoas podem avaliar umas às outras dando de uma a cinco estrelas para cada interação que tiverem com outras pessoas. Sua classificação tem um efeito direto em seu status na sociedade.

Para além das redes sociais, é difícil não imaginar que boa parte dos que invadiram Brasília e transmitiram seus crimes por meio de lives e vídeos estejam de algum modo buscando validação social. As lives em viagens, como a que registrou a queda da aeronave no Nepal, partem da mesma lógica.

Lacie, a personagem principal de Nosedive (Mergulho), ao tentar agradar as pessoas com quem interage entra em uma espiral maníaca. De certa forma, o que vimos em Brasília dias atrás foi um mergulho coletivo, um surto de milhares de pessoas.

Essa lógica distorcida também leva pessoas a perderem suas vidas tentando fazer selfies. Hoje existe até uma categoria de influenciadores que aparecem cometendo crimes. Aparecem, por exemplo, dirigindo veículos enquanto cometem infrações de trânsito, colocando a vida de inocentes em risco. Até mesmo atentados são transmitidos nas redes.

Tudo registrado e marionetes sem vontade própria

No episódio The Entire History of You, o protagonista pode rever todos os momentos de sua vida. Parece uma ideia interessante, até que o personagem inconformado com o presente acaba vivendo mais no passado do que no agora. O saudosismo é um dos traços da cultura digital, como anteviu o filósofo Marshall McLuhan. Pessoas sonhando com a volta da ditadura militar, que acabou porque não funciona, são um exemplo mais recente disso.

No caso do acidente no Nepal, os familiares terão de conviver com as imagens de terror e desespero para sempre, como tem-se tornado mais frequente nas grandes tragédias que acabam sendo amplamente divulgadas na internet. Em Be Right Back, se discute a dor e o amor em um salto de fé de ficção científica para lidar com um problema muito digital: o que fazer com a identidade online de alguém quando ela morre. O que começa como um processo comovente de luto prolongado logo, é claro, se torna macabro.

E o que dizer de USS Callister? Frustrado com a falta de reconhecimento no mundo real, um homem desenvolve um jogo com clones humanos que obedecem a todas as suas ordens. O protagonista é o capitão de uma nave (sim, capitão). Mas o ideal de mundo perfeito (que na verdade era um mundo terrível) entra em crise quando um dos clones questiona as ordens do capitão.

15 Million Merits conta a história de uma sociedade onde as pessoas precisam correr em bicicletas para ganhar créditos. Com esses créditos as pessoas podem comprar a chance de participar de um show. O protagonista consegue comprar uma vaga no show, mas como vingança quer usar a oportunidade para denunciar o sistema. O discurso raivoso contra o sistema em que vivem faz sucesso. Ele recebe seu próprio programa de TV e se torna uma parte ainda maior do sistema contra o qual discursou.

Difícil não lembrar de tantos candidatos que se elegeram atacando o sistema, como se estivessem em um reality show, para depois se tornarem parte do mesmo sistema que criticavam.

Parque de horrores

White Bear é a história de uma mulher com amnésia que se vê caçada por assassinos mascarados enquanto os espectadores simplesmente a filmam com seus telefones. Em boa medida, o terror que ela sente deve ser como se sentem muitas das pessoas detidas pelos crimes cometidos em Brasília, com a diferença de que os celulares estão nas mãos dos Bolsonaristas e eles exigem wifi.

Diversos episódios de Black Mirror também fazem alusões ao BBB, maior fenômeno de audiência e faturamento da TV brasileira e que investe cada vez mais no digital. Oferece drama, intriga, conflitos, em tempo real e 24 horas por dia nas plataformas digitais. Como concorrer com algo tão próximo e realista?

Não surpreende que TVs no mundo todo estejam diminuindo a produção de dramaturgia e até de jornalismo para investir em realities. São mais baratos de produzir e trazem melhores resultados de audiência e receita.

Existem muitos episódios em que é possível fazer analogias com o mundo real. The Waldo Moment fala de um urso azul de animação controlado por um comediante e que vence uma eleição criando polêmicas graças à exposição que temn na mídia. O BBB também lançou muitos candidatos à fama e até na política. Boas obras artísticas são assim, refletem a sociedade e não raro acertam o que vai acontecer. Infelizmente, Black Mirror foi rapidamente superada pela realidade.

Próxima temporada de Black Mirror

A Netflix ainda não confirmou a data de lançamento da sexta temporada de Black Mirror, mas ela está a caminho. Aaron Paul (Breaking Bad) e Kate Mara (House of Cards) foram vistos filmando em East Sussex, em julho de 2022.

A série está suspensa há mais de três anos. O criador e principal roteirista, Charlie Brooker, disse à Radio Times que mais episódios podem ser a última coisa de que todos precisavam no clima da pandemia de Covid-19. "No momento, não sei que estômago haveria para histórias sobre sociedades desmoronando, então não estou trabalhando nisso".

Minha torcida é para que a série retorne logo à Netflix. Já sobre o "Black Mirror da vida real", espero que esta temporada de quatro anos termine e não retorne.

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