Flavia Guerra

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Reportagem

'Não tenho esperança, mas certeza. Irã vai mudar', diz atriz iraniana

Franco favorito à Palma de Ouro do Festival de Cannes 2024, "The Seed of the Sacred Fig" fechou com urgência e celebração da luta feminina para mudar o sistema de controle e opressão que, como observou a equipe do filme presente ao festival na manhã de sexta em conversa com a imprensa, "sequestra a mente das pessoas".

"Não tenho esperança, mas certeza de que o Irã vai mudar", respondeu a jovem atriz Setareh Maleki quando questionada se as novas gerações é que vão finalmente trazer mudanças que garantam liberdade de pensamento e comportamento a seu país.

"E isso graças não só a esta geração, mas a geração que nos precede", completou Setareh, que na trama vive a filha mais nova, ainda adolescente de Iman (Missagh Zareh) e Najmeh (Soheila Golestani), um casal conservador de classe média alta média em Teerã, cujo pai é um servidor público que se torna juiz investigador da Justiça iraniana.

Ao mudar e subir de cargo, ele também passa a ter que assinar documentos que pedem sentenças de morte para prisioneiros sem sequer ler os processos. Em casa, suas duas filhas, que tem amigos que lutam nas ruas contra a opressão, não imaginam o que o pai faz e, quando descobrem, ao mesmo tempo em que o país entra em ebulição, a ordem familiar explode em um caos total. A nova geração não obedece nem à república teocrática e nem ao pai que representa um estado arcaico e opressor.

Questionada se teve medo de fazer o filme, afinal tanto o diretor Mohammad Rasoulof quanto Setareh e sua irmã na trama, Mahsa Rostami (Rezvan), tiveram de deixar o país, a atriz não titubeou:

Não sou a pessoa certa para esta pergunta. Li o roteiro sem saber quem seria o diretor, para que nossa segurança fosse mantida, mas devo ter sido a primeira ou segunda pessoa a entrar para o projeto. Pensei que provavelmente seria a primeira ou segunda pessoa. Mas desde sempre achei que seria ele. Quem mais teria essa coragem? Estou muito feliz e orgulhosa de estar ao lado dele, Setareh Maleki.

Tanto Rasoulof quanto Setareh e Mahsa fizeram questão de reforçar o tempo todo o quanto o filme se deve ao trabalho de toda a equipe que filmou clandestinamente essa história tão controversa.

A gente passou por momentos muito difíceis. A gente tinha um time de 30 pessoas e cada um deles fez todo esforço para que este filme fosse feito. E apesar dessa ansiedade, apesar de acordar de manhã e saber que a gente não vai ver o sorriso deles, é por isso que faço este trabalho, completou ela, atualmente refugiada na Europa, assim como Mahsa.

As atrizes deixaram o Irã antes que o filme fosse descoberto pelo regime, que condenou Rasoulof a chibatadas, cinco anos de prisão (além do confisco de bens) por filmar o longa sem pedir permissão ao governo do país.

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Para escapar da sentença, o cineasta deixou seu país e, há cerca de dez dias, pouco antes do festival começar, em 14 de maio, comunicou publicamente que havia fugido do Irã em uma viagem perigosa e exaustiva. Ele já havia sido preso em 2022 e dividido a cela com o cineasta Jafar Panahi, entre outros presos políticos, e foi justamente na prisão que a ideia do novo filme surgiu.

Um dos meus companheiros de prisão fez greve de fome e ficou em uma situação muito grave até o ponto que as autoridades penitenciárias vieram para examiná-lo. Um dos funcionários tirou uma caneta do bolso meio secretamente e me deu de presente. Eu achei isso meio suspeito, mas ele me disse que todo dia quando passava da porta pra fora da prisão olhava para trás e se questionava sobre o dia em que iria se enforcar na frente daquela porta, contou o diretor.

"Ele disse: 'Meu filhos me perguntam todo dia o que fiz, como foi meu dia.' E assim nasceu a ideia deste filme. Este projeto tinha uma chance muito pequena de dar certo e por isso agradeço a todos da minha equipe que não estão aqui, que continuam sendo perseguidos e interrogados", completou o diretor, que na première de "The Seed of the Sacred Fig" empunhou as fotos dos Missagh Zareh e Soheila Golestani, que vivem o casal principal na trama e que não tiveram autorização para deixar o país.

Contar histórias como essa é claramente a forma de Rasoulof lutar contra o estado opressor.

A república islâmica é capaz de qualquer coisa. Sempre tentou trazer um reino de terror. Eles são capazes de fazer qualquer coisa. Eu tento me concentrar em meus objetivos neste exílio. Quero contar estas histórias do meu povo ao mundo.

Sobre o processo de filmagem de uma história que põe o dedo na ferida do sistema de justiça, a opressão, principalmente ao de exercer o direito de livre manifestação nas ruas, Rasoulof comentou que, apesar da tensão, trabalhou da mesma forma que em seus outros filmes. "Quando penso no passado, acho difícil reconhecer a mim mesmo. Eu não conseguia me controlar (sua raiva). Depois das filmagens, recebi a sentença da prisão e achei que não seria capaz de terminar o filme. A forma como terminei o filme é baseada em uma forma muito espontânea de filmar."

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"Eu recebi a sentença na quarta semana de filmagem, contactei advogados para saber quanto tempo ainda tinha. E eles falaram que ia levar um mês, mas depois logo veio o feriado de ano novo. E havia muita dúvida, pois eu passaria pelo menos cinco anos na prisão. E eu sabia que este filme iria dar outras denúncias e esses cinco anos virariam mais anos ainda. Não pensei em mais nada e queria fechar esta história", relatou o diretor sobre como conseguiu terminar o filme, apesar da perseguição.

"Contei com a lentidão da administração legal para conseguir terminar de fazer o filme. Contei com meu editor, amigo querido, entrei em contato com meus amigos no exterior que fariam a pós-produção. O filme estava na mão deles. Mesmo que eu fosse preso, o filme precisava terminar", concluiu.

Sobre encarar novamente a prisão ou deixar seu país e continuar denunciando os abusos por meio de seus filmes, Rasoulof contou que levou duas horas para decidir.

Andei pela minha casa, disse adeus a minhas plantas, que eu amo. Não é fácil isso. E ainda é difícil falar disso. Da minha casa, nas montanhas, a gente pode ver os muros da prisão. Tenho amigos lá e deixei todas as minhas posses lá e deixei minha casa.

Foram os contatos que fez na prisão que o ajudaram a fugir. "O bom da prisão é que a gente conhece pessoas diferentes, faz contatos. Contactei gente que ajuda outros a fugir do país e são pessoas em que tenho absoluta confiança. Eles me ajudaram a escapar e achar um lugar seguro e passei muitos dias em uma cidade do outro lado. Tenho contatos na Alemanha, da época em que passei outro período lá. Assim que cheguei na Alemanha, declarei publicamente que tinha deixado o Irã. Queria agradecer a todos que nos ajudaram", concluiu.

Rasoulof ironizou o fato de que a vida dos artistas e cineastas iranianos é como a vida de um gangster. "Nós somos os gangsters do cinema."

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Ainda que o discurso político paute o filme e a carreira de Rasoulof, é a história em sua dimensão humana que o interessa, os personagens e suas razões íntimas. "O mau no filme, o que me preocupa é o ser humano que faz o sistema sobreviver. O que me interessa é a motivação que os faz agir assim, por isso foco na questão psicológica. Como eles chegam neste ponto, como eles se tornam escravos do sistema. Como eles se convencem que devem servir ao regime. Meus anos de prisão me ajudaram a entender melhor estas pessoas", analisou.

De fato, é por meio da revolução que as filhas adolescentes provocam em sua própria família conservadora e religiosa que "The Seed of the Sacred Fig" fala da revolução de um país que, em uma medida temporal mais recente, começou no final de 2023 após a morte bárbara da jovem Jina Mahsa Amini, de 22 anos, presa e espancada por não usar corretamente o hijab.

Para Rasoulof, o filme não trata de criticar a religião em si, mas da "religião que funciona mais como uma autoridade política." "No meu filme o que vemos é doutrinação. No Irã você dá o seu cérebro a outra pessoa e a deixa ocupar sua mente. As pessoas querem transformar a religião em uma arma política e penetrar na mente das pessoas. O que elas querem é entrar na cabeça das pessoas para dominá-la. A república iraniana fez da população de refém", declarou.

Tal pensamento vai ao encontro do nome do filme, aliás. O mito do figo sagrado diz respeito a uma espécie de figo(ou "ficus") que é depositado na copa de outra árvore por pássaros. À medida que vai crescendo, vai estrangulando a árvore original, dominando até matá-la. A metáfora serve de paralelo com a cultura opressora e a visão de mundo conservadora de um governo teocrático, que não enxerga a possibilidade de haver modernização e, ao mesmo tempo, preservação de uma cultura milenar. Assim como Iman, o pai dessa família, um governo que tenta impedir que o país se insira em um contexto mundial em que principalmente a mulher ganhou mais liberdade, poder e direitos.

Favorito à Palma 2024, o longa, por sua urgência e sua narrativa habilidosa e ousada, não deve sair sem prêmios desta edição.

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