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Flavia Guerra

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Dos cults às comédias, no cinema Jô Soares foi muito além de "Baker Street"

Jô Soares vive o desembargador Coelho Bastos em "O Xangô de Baker Street", baseado em seu livro homônimo  - Reprodução
Jô Soares vive o desembargador Coelho Bastos em "O Xangô de Baker Street", baseado em seu livro homônimo Imagem: Reprodução

Colunista do UOL

05/08/2022 16h36

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Apresentador, entrevistador, humorista, ator, dramaturgo, escritor, diretor, autor. Tantos Jôs Soares! Transmídia antes que o termo se tornasse comum, Jô é lembrado pelas gerações mais jovens por suas entrevistas bem humoradas, em que brilhavam tanto os entrevistados quanto o entrevistador. Particularmente, a cultura, o bom humor e as grandes sacadas de Jô eram a razão de ser tanto do pioneiro "Jô Onze e Meia" do SBT (de 1988 a 1999) quanto do segundo, e derradeiro, "Programa do Jô", já na Globo, transmitido de 2000 até 2016.

Para as gerações que cresceram nos anos 1960 e 1970, o Jô entrevistador era brilhante, mas o Jô humorista e criador de esquetes e personagens que entraram para a história da TV brasileira fazia falta. Os cinéfilos também sentiam sua falta nas telas, que ele ocupou como diretor apenas uma vez, em 1976 com "O Pai do Povo". Como ator, emprestou seu talento para filmes muito diversos uns dos outros, mas sempre projetos interessantes, ainda que também poucos, se compararmos com sua produção na TV.

De fato. Se comparado com a televisão, Jô fez pouco cinema, mas escolheu bem seus trabalhos. Sua filmografia é eclética. Ele esteve em projetos que agradavam o grande público, como o clássico das chanchadas (provavelmente a melhor de todas) "O Homem do Sputnik", dirigido por Carlos Manga em 1959, em que vive um espião norte-americano em missão ao Brasil e divide a cena com lendas como Oscarito, Zezé Macedo, Normal Benguell, Cyll Farney.

Em "A Mulher de Todos", Jô Soares interpreta o ex-carrasco nazista Dr. Plirtz, um milionário patético e arrogante - Divulgação - Divulgação
Em "A Mulher de Todos", Jô Soares interpreta o ex-carrasco nazista Dr. Plirtz, um milionário patético e arrogante
Imagem: Divulgação

Mas também integrou o elenco do cult e irreverente "A Mulher de Todos", que Rogério Sganzerla dirigiu em 1969 e que trouxe Helegna Inez no papel da ninfomaníaca Ângela Carne e Osso, uma mulher incomum, casada com o ex-carrasco nazista Dr. Plirtz ( Jô Soares), ótimo como um milionário patético e arrogante, dono de empresas, incluindo um império dos quadrinhos no Brasil, e fascinado por balões.

Nesta homenagem às chanchadas com elementos da pop art, um marco do chamado cinema marginal, Ângela é uma mulher rica e entediada com o cidadão médio brasileiro. Ela seduz todos os homens que deseja e leva-os para a paradisíaca Ilha dos Prazeres, onde tudo é possível. Ela os devora, metafórica e propriamente. Nesta antropofagia cinematográfica, Plirtz é o retrato do homem arcaico, que se limita a contratar um detetive particular para comprovar o óbvio: sua mulher não é somente infiel a ele, mas é libertária, desafiadora, encara o machismo de frente e rompe com as tradições não só da sociedade brasileira mas também de como o cinema representava as mulheres até então.

Já nos anos 1980, Jô continuava a dedicar muito tempo e energia à TV, mas encontrou tempo para integrar o elenco de filmes como "Cidade Oculta" (1986), de Chico Botelho, que retrata a então futurista, violenta e labiríntica noite paulistana, com Carla Camurati, Arrigo Barnabé e Claudio Mamberti.

Nos anos 1990, o humorista atuou em "Sábado" (1995), deliciosa comédia de costumes de Ugo Giorgetti, diretor que sabe como poucos tratar em situações cômicas e ridículas de nossas próprias neuroses e nossa mesquinhez, mas sempre com humor perspicaz.

"O Pai do Povo", único longa dirigido por Jô Soares - Reprodução - Reprodução
"O Pai do Povo", único longa dirigido por Jô Soares
Imagem: Reprodução

Como diretor, assinou somente um longa, o já citado "O Pai do Povo"(1976), cujo roteiro ele também assina e no qual também atua. É uma ficção científica que reflete o imaginário da época, quando a Guerra Fria era uma ameaça real, e se passa em uma ditadura "muito distante" (o Brasil também estava em plena Ditadura Militar), a Ilha da Silvéstria. Na trama, depois de três bombas atômicas, todos os homens se tornam inférteis, menos um, que dormia dentro de um cano de chumbo. Ele se torna o último homem fértil resta na Terra, o "pai do povo", que tem de dar sua força reprodutiva para a continuidade da humanidade no Planeta.

Como continuava a ocupava muito de seu tempo, com a televisão, mas também com a literatura e o teatro, acabou por fazer pequenas pontas em projetos alguns interessantes. É o caso de "O Xangô de Baker Street", de 2001, que é, não por acaso, baseado em seu livro de maior sucesso.

Miguel Faria Jr. levou para as telas o best seller que, no melhor estilo antropofágico, uniu Sherlock Holmes às belezas e contradições do Rio de Janeiro de 1886. Neste thriller cheio de humor sobre um serial killer dos trópicos que matava jovens mulheres, além de cortar suas orelhas cortadas, o assassino deixa uma corda de violino (um Stradivarius) na região pubiana de seus corpos. Some-se a isso a cultura afro-brasileira, que ganha destaque tanto ao subverter a sisudez do detetive britânico (vivido por Joaquim de Almeida) quanto ao distraí-lo, ao revelar um mundo fascinante, de seu objetivo: desvendar o crime e também descobrir quem roubou o violino em questão. Na verdade, Holmes havia sido contratado por Dom Pedro II para desvendar o caso do Stradivarius roubado, dado pelo imperador presente a uma amiga, a viúva Baronesa Maria Luíza (Cláudia Abreu), mas o detetive Mello Pimenta (Marco Nanini) pede sua ajuda para prender o serial killer.

Jô Soares vive o desembargador Coelho Bastos em "O Xangô de Baker Street", baseado em seu livro homônimo  - Reprodução - Reprodução
Jô Soares vive o desembargador Coelho Bastos em "O Xangô de Baker Street", baseado em seu livro homônimo
Imagem: Reprodução

É preciso ousadia, coragem criativa e muita perspicácia para criar uma obra que traz esta mistura de referências e humor. No filme, Jô faz uma ponta, curta mas divertida, como o consternado desembargador Coelho Bastos, que, em uma conversa rápida com o delegado responsável pelo caso Mello Pimenta (Marco Nanini), revela-se mais preocupado em agradar o imperador do que com a segurança das mulheres da cidade.

Em 2001, tanto livro quanto filme eram ousados ao retratar com humor questões de um Brasil que se globalizada (ainda que se trate de um filme de época), mas que ainda enfrentava a estrutura de uma sociedade colonial e ainda arcaica, em que os mais abastados podiam pagar para ir ao teatro e ver no palco uma artista internacional como Sarah Bernhardt. Uma elite que acredita que os europeus são mais civilizados e que a classe trabalhadora brasileira tem direito a muito pouco. Duas décadas depois, continua mais atual do que nunca.

É esta habilidade em, mais que sobrepor, mas conectar e ampliar aspectos tão diferentes em uma história que torna Jô Soares único. Não só como o autor do livro, mas também como comediante que apresentava "Satiricom" (uma mistura de sátira com sitcom, veja só, aos meios de comunicação no Brasil dos 1970). Que falta faz hoje um "Satircom"! E ainda some-se a isso a referência ao nome do filme de Federico Fellini ( Satyricon, que, por sua vez, fazia referência a Petrônio). Já o humorístico "Planeta dos Homens" (1976) fazia referência direta ao hoje clássico "Planeta dos Macacos" (franquia que nasceu em 1970). A última participação de Jô no cinema foi também uma participação especial na comédia "Giovanni Improtta" (2013), também último filme de José Wilker.

O cinema, e as artes, sempre estiveram em tudo que Jô Soares fez, das entrevistas aos trabalhos e obras. Cinéfilo, ator, ator, diretor, comediante, músico.

Renato Corrêa de Castro e Jô S - Divulgação - Divulgação
Renato Corrêa de Castro e Jô Soares em Cena de "A Mulher de Todos"
Imagem: Divulgação

Por um acaso destes que a vida não explica, esta colunista conversava ontem com o também ator e humorista Fábio Porchat e ele, que lança nesta semana a comédia "O Palestrante", lembrou que a situação "mais ousada " do nível de "Que História é Essa, Porchat?" que ele já viveu foi, aos 18 anos, ainda anônimo e garoto, ao apresentar um esquete no programa do Jô. Era um diálogo inspirado em 'Os Normais" que ele escreveu e atuou diante da plateia (formada por vários colegas e amigos do curso de Administração que ele fazia na ESPM) e de um Jô paciente e generoso, que o aplaudiu e incentivou. Ao sair do programa, teve a certeza de que era aquilo que queria fazer na vida.

Porchat também comentou sobre o momento difícil, de crise em que o Brasil atual se encontra e de como precisamos, mais do que nunca, voltar a rir. Pode-se ir além. Precisamos, como nunca, de humor com inteligência, de pensadores que nos façam rir, de humoristas que nos façam pensar. Que o legado de Jô Soares nos inspire e nos dê novas gerações de talentos inspirados, com cultura, inteligência, liberdade e muito humor.