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Mussaká e além: matriarca grega 'se virou' em SP e deixou herança saborosa

Daphnie e Andreas Angourakis, herdeiros da tradição culinária grega - Keiny Andrade/UOL
Daphnie e Andreas Angourakis, herdeiros da tradição culinária grega
Imagem: Keiny Andrade/UOL

Flávia G Pinho

Colaboração para Nossa

07/12/2022 04h00

Quem circulou pela zona sul paulistana até os anos 1980 deve lembrar de uma casa diferentona, que se destacava entre as outras construções da Avenida República do Líbano — tinha quatro andares, formato redondo e pintura dourada. Caetano Veloso diria que o projeto era a mais perfeita tradução da família Angourakis, que havia trocado a Grécia por São Paulo no começo da década de 1950 — exótica, ousada, longe de qualquer lugar-comum.

O primeiro a chegar foi Demetrios Angourakis, em 1951. Nascido em Creta e criado na cidade portuária de Pátras, filho e neto de trabalhadores de navios mercantes — que, reza a lenda familiar, também poderiam ser piratas contrabandistas —, o rapaz formou-se em engenharia civil e logo começou a trabalhar na área.

Na empresa, que ficava na capital Atenas, Demetrios conheceu uma moça que destoava dos padrões da época. Nos anos 1940, em plena 2ª Guerra Mundial, quando mocinhas de família eram criadas para casar, Paraskevi já tinha seu diploma de engenharia e arquitetura, então uma carreira única, e um emprego fixo naquele universo essencialmente masculino.

O casamento não custou a acontecer e logo vieram os filhos: Vicky, em 1944, e Andreas, em 1946. Mas a penúria na Europa pós-guerra fez com que os Angourakis deixassem a Grécia para trás em busca de oportunidades no Novo Mundo.

Paraskevi (que virou Vivika no Brasil)  - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Paraskevi (que virou Vivika no Brasil)
Imagem: Arquivo pessoal
Demetrios e Vivika Angourakis - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Demetrios e Vivika Angourakis
Imagem: Arquivo pessoal

"Meu pai veio primeiro, para ver como era o país, e deu a sorte de logo conseguir pegar uma obra importante. São Paulo crescia muito na construção civil e não foi por acaso que ele escolheu viver aqui", diz Andreas, hoje com 76 anos.

No ano seguinte, Paraskevi (que virou Vivika em solo paulistano) e as crianças migraram também. O desembarque, conta Andreas, foi um choque — sem falar uma palavra de português, criada para ser independente e conduzir a própria carreira profissional, Vivika se viu na posição de dona de casa, responsável por cuidar da casa e das crianças (Dionisio, o caçula, já nasceu em São Paulo). Pior: não sabia fritar um ovo.

"Mas ela nunca reclamou e encarou a vida nova de maneira muito digna", orgulha-se Andreas, que perdeu a mãe em 2021, aos 105 anos de idade. "Ela nunca teve doença alguma. Aos 96, quebrou a bacia e voltou a andar, acredita? A visão só começou a falhar quando ela tinha uns 103."

Vicky e Andreas crianças - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Vicky e Andreas crianças
Imagem: Arquivo pessoal

A Grécia paulistana

Andreas era pequeno, tinha apenas 6 anos quando chegou, e não lembra que recursos a mãe usou para alimentar a família naqueles primeiros tempos. Acredita que algumas receitas vieram na mala, mas sabe não era fácil reproduzi-las aqui — faltavam ingredientes básicos.

Gregos comem muita carne de carneiro, peixes e frutos do mar, o que não se encontrava com facilidade em São Paulo. Ela se virou na raça."

Também não havia conterrâneos a quem pedir ajuda com o idioma, já que a colônia grega, naquele tempo, era praticamente inexistente na capital paulista.

Churrasco na casa dos Angourakis - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Churrasco na casa dos Angourakis
Imagem: Arquivo pessoal

A moradia dos Angourakis, claro, não poderia ser banal. Depois de alguns anos vivendo em um apartamento no Centro, e depois em Moema, a família pôs-se a construir a residência definitiva. Projetada pelo casal, a casa foi erguida entre 1964 e 1965 e fez história em São Paulo. Apoiada sobre pilotis, ícone da arquitetura modernista em voga na época, tinha três andares e uma piscina no terraço. A fachada, feita de chapas pré-fabricadas, recebeu pintura dourada.

Por dentro, mais surpresas: "Os armários curvos foram feitos sob medida e os quatro dormitórios eram bem pequenos. Meu pai defendia que ninguém precisa de muita roupa", lembra Andreas. A cozinha, inteiramente planejada, tinha pia e fogão embutidos, que sumiam de vista quando os armários eram fechados.

A casa dos Angourakis, na República do Líbano - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
A casa dos Angourakis, na República do Líbano
Imagem: Arquivo pessoal

Foi ali, naquele cenário meio futurista digno de Os Jetsons, que os Angourakis foram se habituando à vida paulistana. Festeiros que só, adoravam ter a casa cheia de amigos e mantinham a churrasqueira sempre em atividade. Carneiros inteiros eram assados no rolete, uma tradição grega que Demetrios e Vivika fizeram questão de manter e repassar aos filhos.

A gente tempera com azeite, sal, pimenta-do-reino, limão e orégano, muito orégano, e vai molhando conforme vai girando a carne", Andreas recita.

No dia a dia, o cardápio era mais grego do que brasileiro. Antes do almoço ou do jantar, sempre tinha um petisco — queijo, azeitona, torradinhas, o que houvesse à mão. "Gregos adoram, assim como os espanhóis amam as tapas", ele compara.

Andre Angourakis e a filha Daphnie Angourakis - Keiny Andrade/UOL - Keiny Andrade/UOL
Andreas Angourakis e a filha Daphnie Angourakis
Imagem: Keiny Andrade/UOL

Depois vinham os pratos mediterrâneos, com muita carne de cordeiro, ervas, especiarias e grãos, especialmente lentilha — por ali, o feijão preto ou marrom não tinha vez, já que a feijoada levava feijão branco e cordeiro fresco. Iogurte era item presente em boa parte das refeições. "Até hoje, amo comer arroz quente com iogurte gelado em cima", ele diz. No desjejum, a família tinha o hábito de molhar o pão no café infusionado junto com o pó, preparado como o café turco — e servido com muito açúcar.

Riqueza culinária nos dias especiais

Aniversário da Vivika, em 2010 - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Aniversário da Vivika, em 2010
Imagem: Arquivo pessoal

Formado em arquitetura, como a mãe, Andreas manteve viva a herança cultural e o modo de vida muito pessoal dos Angourakis. Casou-se quatro vezes, mas só com a mineira Luísa Maria teve filhos — Daphnie, 41 anos, mais uma arquiteta, e Andreas, 39, que é arqueólogo e vive na Alemanha. Os dois cresceram frequentando a casa redonda dos avós.

Àquela altura, Vivika já tinha se transformado em uma cozinheira de mão cheia, dona de receitas que deixaram saudade. "A gente chegava lá e sempre tinha keftedakia, bolinho de carne que parece almôndega, muito temperado com canela e especiarias", lembra Daphnie. Também ficaram gravados na memória dela os charutinhos de repolho, a spanacópita, espécie de torta folhada de espinafre e queijo feta, e o pastitsio, macarrão de forno preparado com carne moída e molho bechamel. "A gente comia frio, cortado em pedaços", ela conta.

Mussaká - Keiny Andrade/UOL - Keiny Andrade/UOL
Mussaká
Imagem: Keiny Andrade/UOL

No Natal dos Angourakis, o carneiro assado com batatas era obrigatório, mas a lembrança mais doce para a neta são os biscoitos que Vivika passava dias assando. Tinha o amanteigado kurabiê, com amêndoas, e o melomakárona, de nozes, coberto com calda de mel e canela.

"Cada membro da família ganhava uma bandeja, era um ritual de homenagem e carinho. Já mais velha, minha avó assava biscoitos para eu levar aos meus amigos do trabalho. O pessoal ficava louco."

No Ano Novo, não faltava à mesa o vassilópita, bolo de especiarias assado com uma moeda escondida na massa — achar o brinde é sinal de sorte para o ano todo.

Os gregos são muito supersticiosos e isso aparece na nossa culinária. Não há casa sem um olho grego contra mau olhado."

Andreas Angourakis e a filha Daphnie Angourakis - Keiny Andrade/UOL - Keiny Andrade/UOL
Andreas Angourakis e a filha Daphnie Angourakis
Imagem: Keiny Andrade/UOL

Aos pouquinhos, Daphnie foi se aventurando nas receitas da avó e acabou atraindo a atenção do pai, que também resolveu cozinhar. Alguns pratos, a dupla já prepara muito bem — é o caso dos legumes recheados com carne moída —, enquanto outros ainda demandam mais treino, como o pastitsio.

Os biscoitos de Natal, por enquanto ninguém se atreveu a fazer. Eles continuam integrando a ceia, mas são comprados de outra imigrante. "Estão na minha lista de coisas a fazer. Adoro assar biscoito, mas não assumi antes por uma questão de hierarquia na família", diz a moça.

Em compensação, ela e o pai disputam quem faz a melhor mussaká, assado à base de berinjelas, carne moída e bechamel.

É meio trabalhosa, mas adoro fazer e dar de presente para meus amigos", conta Daphnie.

"É um conforto saber que tem mussaká congelada na geladeira." Sortudos, esses amigos.

Receita de mussaká
da família Angourakis