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Com 37 anos de Brasil, português resgata sabores e saudades do Alentejo

Carlos Bettencourt e a esposa Patrícia, com retato dos pais dele em 1954 no Alentejo, durante a Páscoa - Keiny Andrade/UOL
Carlos Bettencourt e a esposa Patrícia, com retato dos pais dele em 1954 no Alentejo, durante a Páscoa
Imagem: Keiny Andrade/UOL

Flávia G Pinho

Colaboração para Nossa

02/11/2022 04h00

Fados cantam amores perdidos, lamentam saudades e vendem a ideia de um Portugal melancólico — o extremo oposto do temperamento solar do imigrante Carlos Bettencourt, 62, que aos 25 trocou um pequeno vilarejo no Alentejo para viver no Brasil.

A vida por lá era até boa. O pai, Antônio, trabalhava como técnico de contas (o equivalente ao nosso contador), enquanto a mãe, Romélia, se encarregava de cuidar do marido e dos três varões — Jorge Manuel, Carlos e o caçula, Antônio Augusto. E como cuidava.

"Era uma santa. Alimentava quatro homens e não faltava café na cama para mim", confessa Carlos, rindo da lembrança gostosa.

A casa da avó, onde todos viviam, era um autêntico solar português, bem espaçoso, cercado por quintal e árvores frutíferas. Nos invernos rigorosos, a imensa lareira, arquitetura típica do Alentejo, era o ponto de encontro da família.

Como não havia televisão, nos reuníamos com os vizinhos, ao redor do fogo, para contar histórias, enquanto os enchidos [embutidos] defumavam na chaminé. Quando lembro disso, parece cena de filme."

Os pais de Carlos, Romélia Bettencourt e Antônio Machado, em 1954 no Alentejo, durante a Páscoa, com dois garrafões de vinho. - Keiny Andrade/UOL - Keiny Andrade/UOL
Os pais de Carlos, Romélia Bettencourt e Antônio Machado, em 1954 no Alentejo, durante a Páscoa, com dois garrafões de vinho.
Imagem: Keiny Andrade/UOL

Vinho 'de criança' e comer passarinho

Carlos começou a trabalhar cedo, ainda adolescente, no misto de pensão, restaurante e taberna que pertencia ao tio. Servia mesas e atendia no balcão, sem sequer imaginar que se tornaria um importante restaurateur além-mar. O vinho, adquirido em barricas de 50 litros, era posto em um canto do salão, com as duas torneirinhas ao alcance das mãos — uma para o branco, outra para o tinto. E a bebida não era proibida aos mais novos.

Quando estávamos doentes ou debilitados, minha mãe nos dava sopa de cavalo cansado, uma papinha feita com pão, vinho tinto e açúcar."

Carlos Bettencourt em sua infância, em Portugal - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Carlos Bettencourt em sua infância, em Portugal
Imagem: Arquivo pessoal

Outro hábito que parece estranho ao mundo contemporâneo era o de cozinhar passarinhos. Centenas dele, caçados durante a noite, eram depenados e, no dia seguinte, estavam na frigideira.

A culinária portuguesa é conhecida por ser uma comida substanciosa — e a do Alentejo, região essencialmente rural, é particularmente farta, feita para manter o ânimo dos trabalhadores do campo. As sopas, que Dona Romélia tanto amava preparar, valiam por uma refeição completa porque continham de um tudo: feijão, agrião, beldroega, batata, carnes, linguiças, couve e o que mais houvesse à mão.

Na infância, o pequeno Carlos torcia o nariz para os caldos pedaçudos, comia por obrigação, mas hoje elas são motivo de saudade. "Já adulto, depois que vim para o Brasil, eram os pratos que pedia para minha mãe preparar quando voltava a Portugal."

Os Bettencourt viviam em uma porção interiorana do Alentejo, longe do litoral, onde os peixes não eram frequentes à mesa. Comia-se muita carne de porco e seus chouriços, mas também perdizes, coelhos e até pombos. Os ingredientes eram quase sempre aqueles que estavam ali ao redor, pelos quintais da vizinhança, em receitas de uma simplicidade encantadora.

Lembro de um pernil suíno não muito grande, que minha mãe preparava com uma crosta de farinha de pão, ovo e salsa. Depois de assado no forno, ele ficava na geladeira, fatiado, para ser comido no pão."

Carlos, a mãe Romélia Bettencourt e o pai Antônio Machado - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Carlos, a mãe Romélia Bettencourt e o pai Antônio Machado
Imagem: Arquivo pessoal

Os doces de ovos não eram os preferidos do garoto. A encharcada alentejana é famosa, mas Carlos gostava mesmo do arroz doce, que comia pelas beiradinhas do prato, conforme ia esfriando.

De Lisboa para SP

Por que alguém troca uma vida tão tranquila e amorosa pela aventura de começar sozinho, e ainda por cima em terra estrangeira e desconhecida? Coisas da juventude.

Carlos Bettencourt e a esposa Patrícia - Keiny Andrade/UOL - Keiny Andrade/UOL
Carlos Bettencourt e a esposa Patrícia
Imagem: Keiny Andrade/UOL

Aos 21 anos, inquieto e cheio de ideias incertas para o futuro, Carlos pegou um ônibus e desembarcou em Lisboa, onde pretendia bater nas portas das embaixadas em busca de um emprego fora do país. Queria ganhar o mundo, ver novos horizontes. E foi na barulhenta capital que um encontro inesperado mudou seu destino.

"Encontrei uma amiga, cujo pai morava em Foz do Iguaçu e era fazendeiro. Na hora, me imaginei montado a cavalo, passeando pelas propriedades", conta às gargalhadas.

Aí soube que o melhor amigo dele tinha pizzarias no Rio de Janeiro, e logo pensei nos neons cariocas piscando..."

O networking improvisado demorou um tiquinho, mas rendeu frutos — cerca de quatro anos depois, Carlos desembarcou no Brasil para trabalhar em um hotel de Foz do Iguaçu. Antes de completar o primeiro ano no emprego, mudou-se para a cidade maravilhosa, onde foi contratado pelo sofisticado restaurante português Antiquarius.

O que aconteceu a partir dali parece roteiro de novela — em 1990, aquele imigrante português que aprendeu o ofício na taberna do tio foi escalado para comandar a inauguração da filial paulistana do Antiquarius.

Em 2004, já tinha um restaurante para chamar de seu, o igualmente elegante A Bela Sintra, localizado no Jardim Paulista, um dos bairros mais caros de São Paulo. Depois vieram o Chiado, também em São Paulo, e o Dois Rios, em Campos do Jordão.

Carlos Bettencourt e a esposa Patrícia - Keiny Andrade/UOL - Keiny Andrade/UOL
Carlos Bettencourt e a esposa Patrícia
Imagem: Keiny Andrade/UOL

Hoje, a rede de restaurantes é assunto de família. Filipa, 27, e Miguel, 25, já trabalham com o pai, assim como a mulher de Carlos, Patrícia, que é neta de portugueses e ocupa o cargo de chef executiva. Os filhos são brasileiros, mas cresceram com a herança lusa à mesa.

Desde miúdos, como Portugal chama suas crianças, comiam pratos que não costumam figurar no repertório infantil. "Lembro que sempre amei comer frutos do mar. Quando era pequeno e ia a hotéis, detestava os bufês infantis, preferia comer polvo e lula. Hoje, moro sozinho e meus amigos brincam que pode faltar água na geladeira, mas nunca arroz de pato", diz Miguel.

A receita de família de
Carlos Bettencourt

O bacalhau, ingrediente ícone dos menus dos restaurantes e símbolo de Portugal para o público brasileiro, não chega a ser um prato do dia a dia para os Bettencourt. Mas há uma receita que sempre sai da gaveta quando a saudade do Alentejo bate mais forte — e que, não por acaso, foi batizada de Bacalhau da Mamãe.

Era o prato que minha mãe fazia duas, até três vezes por mês, na hora do almoço, por ser fácil e rápido de preparar. A gente sempre acompanhava com um bom pão alentejano."

Melhor ainda se for ao som de um fado, daqueles de rasgar o coração.