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Estrela Vermelha, a apoteose do futebol iugoslavo

24/05/2016 10h50

Belgrado, 24 Mai 2016 (AFP) - Bari, 29 de maio de 1991. Dragan Dzajic fecha os olhos para não assistir à última cobrança da disputa de pênaltis da Copa dos Campeões da Europa, entre Estrela Vermelha e Olympique de Marselha, a apoteose do futebol iugoslavo, antes do banho de sangue.

O diretor do time de Belgrado só reabre os olhos quando ouve o clamor no estádio San Nicola, sinal de que o macedônio Darko Pancev balançou as redes.

Quem ergue a 'Taça Orelhuda' é o goleiro kosovar Stevan Stojanovic, capitão do time, que defendeu a cobrança de Manuel Amoros, depois do empate sem gols que perdurou no tempo normal e na prorrogação.

Sob o comando do técnico Ljubko Petrovic, sérvio nascido na Bósnia, a equipe também tinha como destaque o croata Robert Prosinecki.

Há 25 anos, iugoslavos de todas as origens jogavam lado a lado. A qualidade técnica era tamanha que ganharam o apelido de "brasileiros da Europa".

- Reinado efêmero -A referência ao Brasil não para por aí. O estádio onde a Estrela Vermelha manda seus jogos se chama até agora o Marakana, homenagem ao lendário recinto carioca. Hoje vetusto, tinha capacidade para 100.000 torcedores nos tempos áureos.

A geração dourada que conquistou a Europa em 1991 já vinha sido preparada por Dzajic há cinco anos. Ex-atacante do clube, ele chegou às semifinais do torneio duas décadas antes, em 1971, mas só realizou o sonho como dirigente. A ideia era reinar sobre continente por muitos anos, mas a guerra não demorou a ofuscar o brilho da Estrela Vermelha.

"Trabalhamos durante muito tempo para chegar ao topo. Quando conseguimos, o país desapareceu", lamenta Dzajic.

Na véspera da final contra o Olympique, em outro estádio, o Kranjceviceva de Zagreb, a guarda nacional croata organizou sua primeira parada militar.

No dia 25 de junho, Croácia e Eslovênia proclamaram a independência. Belgrado enviou tropas. Depois de meses de tensões, o país multi-étnico implodiu com o conflito que deixou mais de 130.000 mortos até 1999, a maioria civis.

-'Coisas feias vão acontecer'-"Os jogadores não imaginavam que o país iria desaparecer", lembra Dzajic pour l'AFP. "Estávamos totalmente voltados para o esporte", concorda o ex-goleiro Stojanovic, que acabou saindo para o Royal Antwerp, da Bélgica, logo depois do título europeu.

"Eu me lembro que eu pedi o conselho de um dirigente quando recebi a oferta dos belgas. Ele respondeu: 'Rapaz, aqui não tem mais nada. Coisas muito feias vão acontecer. Vá procurar trabalho em outro lugar'. O elenco que construímos ao longo de cinco anos foi desmanchado do dia para a noite", recorda.

"Tínhamos vários projetos, queríamos contratar David Suker, que jogava no Dínamo Zagreb. Obviamente, ele estava doido para jogar com a gente", relata Petrovic.

Maior ídolo da história do futebol croata, Suker, que hoje é presidente da federação do seu país, nunca jogou na equipe de Belgrado. Em 1991, preferiu o exílio para o Sevilla, na Espanha, e acabou conquistando o título europeu com o Real Madrid, em 1998.

"Antes da guerra, não tínhamos problemas para atrair jogadores de toda a Iugoslávia. Tinha muçulmanos, croatas... Sempre escolhemos os melhores", resume Dzajic.

- A sombra de 'Arkan' no Marakana -Nos arredores do estádio Marakana, não existe nenhum vestígio dos tempos gloriosos do clube. Apenas pichações nos muros, com referências violentas.

Uma delas pede "justiça para Uros", um hooligan preso depois de ter ferido um policial a pancadas. Outra mostra um torcedor encapuzado que ergue um pedaço de pau.

Em cima de um morro com vista para o estádio, uma mansão adornada por colunas. Não é a casa de um jogador ou de um dirigente, mas de Zeljko Raznatovic, vulgo "Arkan", ex-líder paramilitar assassinado em 2002.

Foi na torcida organizada da arquibancada norte que recrutou parte dos 'Tigres', milicianos que foram instrumentos de chacinas étnicas na Bósnia, na Croácia e no Kosovo.

A Estrela Vermelha acaba de conquistar seu 27º título nacional, mas praticamente não houve festa pela conquista, ao final de um campanha sem rivais, em estádios vazios.

"Não consigo acreditar no que vejo hoje, depois de ter disputado e acompanhado jogos incríveis até 1991. Só conseguimos ganhar esse título europeu. Se a Iugoslávia tivesse sobrevivido, teríamos conquistado muitos outros", completa Dzajic, que é detém para sempre o recorde de partidas disputadas com a camisa da seleção iugoslava (85).

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