Torcida e confiança

Volta do público aumenta rendimento de quem joga em casa e ajuda jogadores a lidarem com ódio em redes sociais

Eder Traskini Do UOL, em Santos (SP) Ettore Chiereguini/AGIF

Torcida na arquibancada, mais vitórias para o time da casa

O torcedor está de volta aos estádios de futebol no Brasil. Entre o fechamento das arquibancadas, em março de 2020, ainda durante os estaduais, até a retomada definitiva (ao menos até agora...) do público, entre setembro e outubro, jogadores encararam quase 20 meses de portões fechados.

O resultado disso foi uma mudança de parâmetros no futebol nacional.

Só no Campeonato Brasileiro, nas edições de 2020 e 2021, foram 601 jogos realizados sem a presença de torcedores. Sem eles, jogar em casa deixou de ser tão importante: em 2020, o aproveitamento de quem jogava em seu estádio foi de 45%; em 2021, caiu para 37%, nos 221 jogos realizados até a reabertura dos portões. Nos últimos cinco anos do torneio, com a presença de torcida os mandantes venceram 50% de suas partidas.

Desde que o público foi liberado para retornar aos estádios, porém, os mandantes melhoraram. A média, aliás, é superior àquela histórica. Em 116 partidas realizadas desde a volta do torcedor, quem joga em casa saiu vencedor em 56,9% das vezes. Em termos de aproveitamento de pontos, o número é ainda maior: 64,6%.

O Corinthians é o melhor exemplo disso. Após começar o torneio flertando com a zona de rebaixamento, desde a volta dos torcedores à Neo Química Arena o time só venceu como mandante. São sete vitórias em sete partidas - sem público, o aproveitamento alvinegro era de apenas 52 % (22 pontos conquistados em 14 partidas).

Além dos números, existe também o impacto humano: assim como os jogadores tiveram de se adaptar a jogar sem público, agora eles estão tendo de entender como jogar com o apoio (e às vezes a pressão) das arquibancadas. O UOL conversou com um jogador, técnicos e psicólogos para entender como está sendo o processo.

Ettore Chiereguini/AGIF

Redes antissociais

Eu acho que é mais difícil lidar com as críticas das redes sociais do que com as vaias no estádio. Ali, no momento do jogo, você está com a adrenalina a mil e pode até se incomodar, mas logo vai dar o seu máximo para ganhar a próxima jogada e, segundos depois, em vez de ser criticado, pode ser elogiado."

Esse é o atacante Dudu, do Palmeiras. As frases, ditas ao UOL para essa reportagem, mostram um dos principais problemas que a ausência de público nos estádios potencializou: o impacto das redes sociais na vida de atletas e torcedores. Sem o contato durante as partidas, o fórum de comunicação foi virtual. E o jogador se viu na necessidade de frequentar ainda mais as redes para procurar a avaliação de seu desempenho.

Só que, ao fazer isso, nenhum deles encontrou material amigável.

Subindo hashtags ou fazendo críticas pesadas diretamente no perfil dos atletas, os torcedores gritavam nas redes suas frustrações. E esses gritos, como sempre acontece nas redes sociais, chegam sem filtro e, por vezes, ultrapassam a linha do respeito. Dudu admite que teve problemas nas redes. Prefere o ambiente das arquibancadas.

"É uma atmosfera muito boa [o estádio com torcida]. Nas redes sociais já é diferente. As pessoas falam coisas que machucam. Eu mesmo já tive alguns problemas. Discuti com algumas pessoas. Mas, hoje em dia, recebo bastante orientação e aprendi a lidar melhor com isso. Quando eu estou de cabeça quente, evito entrar."

Ettore Chiereguini/AGIF

As redes sociais são fortes com ou sem gente na arquibancada. O atleta precisa aprender a lidar com isso. Se o jogador fica incomodado com o que lê, é melhor evitar, porque, infelizmente, existem pessoas bem maldosas e as palavras acabam machucando bastante. A maioria de nós, jogadores, é pai de família, temos filhos, corremos atrás de nossos objetivos e queremos vencer de qualquer jeito. Quando perdemos, eu por exemplo, fico maluco, Não consigo nem dormir. E aí tenho que ler coisas absurdas. É muito complicado. Mas, como eu falei, é o mundo atual e precisamos aprender a lidar."

Dudu, atacante do Palmeiras

Ettore Chiereguini/AGIF Ettore Chiereguini/AGIF

A readaptação

O futebol, assim como o restante do mundo, teve de entender como o "novo normal" afetaria o futebol. Primeiro sem o público e, agora, com o seu retorno. Segundo o psicólogo Paulo Ribeiro, do Botafogo, o cérebro dos atletas já havia se acostumado com o que ele chama de "modo de segurança". Agora, precisará se readaptar com a volta do torcedor.

"Vivemos um longo período na pandemia com treinos online e vivemos um longo período sem público, o que permitia lidar melhor com as críticas que esse público traz. O cérebro se adaptou a esse modo de segurança que foi oferecido para esse período. É necessário chamar a atenção dos jogadores sobre a mudança no ambiente com a volta do público. Isso é sensível a essa maquinaria cerebral toda e faz com que, já tendo um costume de estar sem público, isso se torne novidade. Mesmo que eles já tenham vivido essa questão de trabalhar com público", diz Ribeiro.

"Houve um processo de adaptação psicológica para jogar sem torcida, isso já foi muito difícil. Impacta em estudos sobre a questão do repertório motivacional de atletas que jogam diante de torcidas e que agora pudemos observar jogando com estádios vazios. O retorno também vai exigir uma readaptação emocional. Pode ser que aconteça de alguns jogadores sentirem o retorno do público, mas acredito que vai ser mais tranquilo do que conviver nas redes sociais", completa o presidente da Associação Paulista da Psicologia do Esporte, João Ricardo Cozac.

EITAN ABRAMOVICH/AFP

Não existe futebol sem torcedor. A pressão existe e o jogador tem que estar pronto para isso, para os momentos em que tiver dificuldade dentro da partida. É superar e saber que vamos ter a torcida do nosso lado para apoiar. Eu gosto do torcedor vivo, que é aquele que está no estádio. Torcedor de rede social... Primeiro que eu não acompanho rede social, é minha assessoria que cuida de muita coisa pra mim. Eu falo como ex-atleta e como treinador que gosto de sentir o calor do torcedor, o grito do torcedor e o incentivo."

Alberto Valentim, técnico do Athletico-PR

Fernando Moreno/AGIF Fernando Moreno/AGIF

Nesse cenário, a palavra-chave parece ser confiança

"Confiança, em psicologia, é a habilidade que algumas pessoas têm de reconhecer nos obstáculos oportunidades para superação, para encontrar boas habilidades. A confiança demonstra um tipo de atitude específica normalmente em base de enfrentamento diante de situações adversas. É muito importante, enquanto tarefa da psicologia do esporte, ajudar os atletas a encontrar esse caminho de confiança sempre pautado na questão de autoestima e autoimagem. A imagem que cada atleta tem de si, cada indivíduo como um todo, reflete muito as suas ações", define Cozac.

O que o psicólogo está analisando é o processo de adaptação do jogador ao contato com os torcedores no estádio, a migração para um relacionamento 100 % virtual durante a pandemia e, agora, a volta ao modelo antigo. É o processo de construção dessa autoestima que precisa ser reaprendido.

Para Elano, ex-jogador que disputou uma Copa do Mundo pela seleção brasileira e hoje é técnico da Ferroviária (SP) (que quase conseguiu o acesso à Série C neste ano), o equilíbrio mental deve ser trabalhado. "O jogador tem que estar preparado. A partir do momento em que você decide ser um atleta de futebol no nosso país, está sujeito a elogios e críticas, a aplausos e vaias. Eu, particularmente, vivi muitos momentos de aplausos e de vaias, tanto da torcida visitante quanto da torcida local. Você precisa ter sempre um equilíbrio mental muito positivo, que é muito importante para conduzir sua carreira. Hoje, os atletas têm muita informação e é sempre importante o diálogo para manter o equilíbrio", opina.

O mundo está muito mais conectado em rede social do que no presencial. Essa esfera crítica da internet ficou muito forte e tem peso, sim, em algumas decisões, assim como a crítica de campo. Como treinador, no momento de jogo procuro amenizar, mas sabemos que tem o jogador que sente mais e o que sente menos. Presencialmente, passei por algumas situações de dificuldade em campo, mas consegui contornar. Dentro do campo, o retorno do público tem o lado positivo. A integração do futebol é maravilhosa."

Elano, ex-jogador e técnico da Ferroviária

Confiança tem muito a ver com essa questão das redes sociais, com comentários muitas vezes com raiva da torcida. Quando o atleta sabe que errou ou acertou, quando tem uma avaliação coerente de sua performance, é capaz de distinguir o que está sendo dito do que efetivamente ele acredita. Agora, é sempre muito importante dizer que, dependendo do momento que o atleta se expõe em redes sociais, ele pode ser bastante atacado. E nesses momentos é que percebemos a resiliência, que tem muito a ver com a questão da confiança."

João Ricardo Cozac, presidente da Associação Paulista da Psicologia do Esporte

Thiago Ribeiro/AGIF Thiago Ribeiro/AGIF

O perigo das redes sociais

Não é à toa que, até aqui, falamos tanto sobre redes sociais. Hoje, elas representam um perigo para a parte psicológica como um todo dos atletas. Coaching esportiva, Thaís Vieira trabalhou no Santos. Ela costuma alertar seus atletas dos perigos, mas explica que a inteligência emocional é o mais importante nesses casos.

"É muito fácil criticar alguém usando perfis falsos. É uma covardia no campo comportamental. Influencia o jogador? Influencia se ele não está muito focado, não está com seu emocional trabalhado. Um atleta que tem a cabeça focada, trabalhando a inteligência emocional e com foco onde quer chegar não deixa isso abalar. Eu falo para os atletas postarem e saírem das redes para não lerem comentários maldosos antes dos jogos. Depois, se quiser, vai ler. Assim, não deixa que coisas de fora atrapalhem ou tirem o foco", explica.

"Atletas que ficam muito nas redes sociais e se baseiam ou se vulnerabilizam diante de críticas normalmente são atletas que projetam sua identidade naquilo que é dito sobre eles nas redes. Portanto, é um lugar em que não há espaço para vulnerabilidade em termos de autoconceito, de autoimagem, em termos de identidade. Ocorre que, infelizmente, atletas acabam entrando em rede social buscando elogios e palavras de apoio e, não raro, encontram um monte de críticas, às vezes bem pesadas. Dependendo da sua confiança em si, essas críticas podem derrubar sua autoestima, sua confiança interna e acabar prejudicando o seu desempenho", afirma Cozac.

Volmer Perez/AGIF
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As redes sociais têm penetração muito grande na atenção do atleta e na confiança dele em seu trabalho. Quando ele vê esse trabalho sendo amplamente criticada, de forma até criminosa, é claro que ele sente. Os atletas acessam as redes sociais diariamente, assim que termina uma partida já se vê na rede o que falaram, se foi positivo ou negativo. Uma crítica sofrida por um atleta é abafada com a presença de público, ao contrário das redes sociais. Quanto maior a frequência [do jogador nas redes], maior o número de comentários negativos, que é o que gera engajamento. Existem pesquisas que apontam isso. Por isso é importante que ele tenha um capital mental fortalecido."

Paulo Ribeiro, psicólogo do Botafogo, que venceu no fim de semana a Série B.

Reprodução/Premiere

Na volta, violência e assédio

Saindo do campo das adaptações dos jogadores, a volta das torcidas trouxe a ameaça de violência e assédio nas arquibancadas. Na 29ª rodada, o Palmeiras venceu o Grêmio por 3 a 1 em Porto Alegre. Após a partida, a torcida gremista invadiu o campo, brigou com seguranças e destruiu a cabine do VAR. Além disso, aconteceu um confronto ridículo entre palmeirenses e gremistas por uma grade, com socos cegos e ameaças, mas sem muito contato físico.

Foi a briga que mais viralizou, mas não a única. Na semana passada, a vitória do Atlético-MG sobre o Athletico, em Curitiba, foi paralisada por dois minutos por briga entre torcedores. Dez dias antes, a briga chegou aos jogadores, no Gre-Nal: após vencer o jogo por 1 a 0, jogadores do Inter comemoram com caixões com a letra B —uma provocação ao rival que luta para escapar do rebaixamento. A briga em campo foi generalizada.

Mais grave foi o que aconteceu, por vezes seguidas, em Belo Horizonte: mulheres relatam assédios sexuais no meio da torcida em jogos do Atlético-MG. Em um dos relatos, publicado pelo UOL Esporte no dia 12 de novembro, uma mulher conta que foi agarrada e beijada à força. No fim de semana, a delegacia do Mineirão lavrou dois boletins de ocorrência com acusações similares.

Ettore Chiereguini/AGIF Ettore Chiereguini/AGIF

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